quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Transatlantic Workshop on Alternative Housing Models - Berlim, 8-10 de Outubro de 2015


Durante os dias 8, 9 e 10 de Outubro ocorreu em Berlim uma mesa redonda intitulada Transatlantic Worshop on Alternative Housing Models, promovida pela Rosa Luxemburg Stiftung- New York Office a pela Right to the City Alliance, onde estiveram presentes representantes de várias associações activistas, colectivos e investigadores europeus e norte americanos que, de forma mais ou menos directa, têm vindo a explorar modelos alternativos de habitação. O colectivo Habita esteve presente neste Workshop.

O encontro decorreu fundamentalmente num antigo complexo industrial, integrado no tecido urbano de Berlim, constituído hoje como estrutura associativa de resistência à especulação imobiliária.

Durante os três dias de mesa redonda foi debatida uma série de temáticas relativas a modelos alternativos de habitação, maioritariamente centradas nos modelos de Cooperativas – não só habitacionais, também como modelo de organização social, Community Land Trusts e Ocupações.

Deste debate, evidencia-se a diferença de visão política relativa à questão da habitação entre Europa e América do Norte, ainda que cada vez mais ténue: se os modelos habitacionais apresentados para a América do Norte assentam maioritariamente em Cooperativas e Community Land Trusts, onde o privado é a entidade que promove e gere estrutura habitacional, não havendo se quer lugar à discussão relativa à habitação pública, na Europa, este tipo de iniciativas debatem-se simultaneamente com as questões de gestão do parque habitacional público.

Trata-se de modelos que se apresentam como potenciais de controlo perante a especulação imobiliária pela capacidade que det. Contudo, estes sistemas dependem de liquidez financeira – certamente mais imediata a partir de uma organização colectiva e não individual-, verificando-se a necessidade de recurso ao sistema bancário, substituído, nalguns casos, por fundações que trabalham com base nesse propósito.

Destas tipologias, e embora a Cooperativa tenha sido um modelo altamente incentivado e explorado em Portugal durante os anos 80, aquando da falta de soluções habitacionais para a população existente, destacam-se algumas ideias que poderiam ser aplicadas ao contexto nacional, nomeadamente a sua capacidade de combater processos de gentrificação, a promoção de sistemas de coabitação, com base em tipologias habitacionais adaptativas (número de pessoas por agregado familiar, temporalidade da habitação, …), a definição de taxas de esforço máximas para a habitação ou até mesmo o trabalho participativo neste tipo de estruturas.

Para além dos modelos de habitação alternativos, nesta mesa redonda houve espaço para debater algumas questões inerentes à habitação pública, muito mais vincadas nos países europeus do que na América do Norte onde é praticamente residual e altamente estigmatizada. Destaca-se a privatização que tem sido conduzida nos últimos anos no Reino Unido –onde na década de 1970, 1 em 3 habitantes viviam em habitação pública-, ou em Madrid, onde se verificou um processo de venda das habitações públicas a privados nos últimos anos. Também na Alemanha, embora aqui o processo esteja bastante mais institucionalizada. Aqui, a gestão do parque habitacional dito público, é feita por empresas privadas, o que tem conduzido ao acentuado aumento das rendas ditas públicas, de forma descontrolada. Da luta que tem sido travada em Berlim nos últimos anos, destaca-se a aprovação da alteração à lei relativa às políticas de habitação social, ainda que bastante longe das propostas inicialmente propostas.

Outras ideias foram também debatidas nesta mesa redonda e que, de forma mais ou menos directa, nos permitem pensar as questões da habitação. Destaca-se, a apresentação do coletivo PAH (Espanha) e a relevância que aqui foi dada aos movimentos sociais na alteração das estruturas políticas e à participação dos cidadãos; também algumas ideias relativas ao combate dos problemas relativos à habitação em Espanha que de forma muito directa se assemelham com os identificados em Portugal. A taxação das casas vazias há mais de dois anos, a negociação que o colectivo tem conseguido fazer com os bancos estabilizando rendas sociais para o pagamento das hipotecas são algumas das hipóteses de intervenção que poderão ser equacionadas em contexto nacional.

Embora em contextos distintos, ideias debatidas ao longo deste workshop poderão ser reinterpretadas em contexto nacional; poderão e deverão ser articuladas com o trabalho que, enquanto colectivo, a Habita desencadeou com as acções de Setembro.

Daniela Alves Ribeiro

20 de Outubro de 2015

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Caravana feminista estará na Amadora em solidariedade com mulheres que vivem em bairros auto-construídos

Amanhã, a Caravana Feminista que partiu do Curdistão/Turquia a 8 de Março e percorreu toda a Europa, no âmbito da IV Ação da Marcha Mundial de Mulheres, vai estar na Amadora para denunciar e marcar solidariedade com as mulheres que vivem em bairros auto-construídos e têm sido alvo de despejos e demolições massivos e autoritários. 

O dia de ação começará às 9h30 no Bairro de Santa Filomena donde sairá uma marcha que passará no 6 de Maio e finalizará na Cova da Moura. Depois do almoço, será o momento de abertura da ação final da IV Ação Internacional da Marcha, com Yıldız Temürtürkan (Curdistão) e Judite Fernandes (Portugal), ambas do Comité Internacional; Clara Carbunar (França), da Caravana Feminista; Isabel Marques e as Mulheres do Batuque, da Associação Moinho da Juventude. Haverá depois a apresentação do Documentário "Mothers' Strike", uma História de luta contra os despejos em Wałbrzych,  Polónia, promovido pelo Feminist Think Tank, Szum TV; a instalação do estendal “Violência sobre as Mulheres - Femicídios em Portugal”; Visitas ao Bairro; uma conversa sobre a luta das Amas; e ainda um debate sobre segregação urbana, racismo e direito à habitação.  

Com este dia de acção pretende-se contribuir para desafiar e questionar os múltiplos processos de segregação, precarização, discriminação, vulnerabilização e expulsão que, de forma tão violenta estão a ocorrer na Amadora. Sabemos que esses processos têm uma marca racista e que se cruzam com a discriminação de género e que apontam, de forma igualmente violenta, para quem está numa situação económica extremamente vulnerável. Lembramos que, ao longo dos últimos anos a Câmara Municipal da Amadora (CMA) tem despejado centenas de pessoas, muitas delas crianças, idosas, com doenças crónicas, que ficaram sem qualquer alternativa habitacional digna e adequada às suas condições de vida. Entre as pessoas desalojadas, há um forte peso de mulheres, que foram afectadas pela onda de despejos de forma particularmente violenta. 

16 de Outubro [Lisboa] – Em Lisboa, na Fábrica Braço de Prata, o dia será dedicado à realização de oficinas, tertúlias e debates com o mote Corpo, território com múltiplas estratégias feministas. 

17 de Outubro [Lisboa] – No último de manhã haverá uma assembleia sobre Mulheres e Guerras e à tarde terá lugar a assembleia final, ambas no Auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa. Depois de uma Marcha pelas ruas de Lisboa haverá uma Festa-Concerto, no Largo do Intendente.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Como transformar a habitação num privilégio? O caso dos bairros cooperativos de Azeitão em risco de despejo como exemplo


Em dois bairros de habitação social situados em Azeitão, construídos por uma cooperativa de habitação na segunda metade dos anos 80, há 41 famílias em risco de ficar desalojadas, apesar de terem pago integralmente as suas casas. Perante um país que se desmorona a ritmo acelerado, o problema de 41 famílias poderá parecer relativamente secundário para muita gente. Mas, como acontece em quase todas as lutas, o que os moradores de Azeitão enfrentam é parte de um problema maior e permite-nos olhar muito para lá do contexto local. Nesta situação particular vemos tanto os reflexos presentes de um país dominado pela austeridade e pela crise, como as consequências do processo de hegemonização do neoliberalismo, verificado nos últimos anos, que subordinou quase todas as dimensões das nossas vidas (entre elas a habitação) à finança e ao mercado. É por aqui que o que acontece em Azeitão, apesar de todas as suas especificidades jurídicas, sociais e políticas, se confunde com o brutal despejo de uma mãe e duas filhas da sua casa, em Silvalde, ou o despejo de qualquer outra família por uma dívida ao fisco, ou se confunde com as populações dos bairros de Santa Filomena, Estrela de África ou 6 de Maio, na Amadora.


Que o jogo está viciado pelas regras do mercado e da finança torna-se logo evidente pela necessidade que eu próprio tive de referir – para frisar o usufruto do direito a ter uma casa – que as pessoas pagaram integralmente as casas que habitam há quase 30 anos, como se o facto de as terem pago total ou parcialmente tornasse mais ou menos legítima a expulsão de uma família da única casa que tem. Nessa armadilha começa a confusão entre direito e privilégio. No quadro actual, a habitação é uma mercadoria equiparável a tantas outras mercadorias que têm lugar nas nossas vidas como fruto de uma simples escolha, algo que podemos escolher entre ter e não ter: uma espécie de luxo ou de produto secundário face a coisas básicas como a alimentação.

São muitos os mecanismos e os conceitos através das quais esta realidade se materializa e legitima. Apesar do reconhecimento do direito à habitação pela constituição portuguesa – e não apenas do direito a uma habitação, mas sim “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (artigo 65.º) –, é muitas vezes através dos tribunais e do aparato jurídico que acontece a negação desse mesmo direito. As leis parecem transformar-se em leis da física, aparentemente imutáveis e incontornáveis, e a justiça, mais do que um fim, revela-se refém dos interesses financeiros. Em Azeitão, pela peculiaridade da situação, toda a gente assume estar em causa uma grande injustiça. No entanto, são muitos os que não deixam de afirmar, imediatamente a seguir, a inevitabilidade do que está a acontecer. A lei é usada, por um lado, como um campo neutro para desresponsabilizar aqueles que insistem que despejar alguém da sua única habitação é uma fatalidade contra a qual nada se pode fazer, e, por outro lado, é usada para responsabilizar os moradores, neste caso, por um problema com o qual nada têm que ver. Só assim se explica que estas famílias tenham acordado uma manhã com um anúncio no jornal a leiloar as suas próprias casas, como se estivessem vazias. A lei permite transformar aquilo que é uma questão política num problema meramente técnico, na tirania da simples gestão do presente, como se assim se pudesse legitimar qualquer barbaridade.

A dívida é outra palavra-chave do nosso tempo. Paira sobre nós, no dia-a-dia, e manda tanto nos orçamentos de Estado como nos orçamentos familiares. Foi em grande medida através da habitação que ela se instalou nas vidas de quase toda a gente. Mas a dívida funciona como um imperativo moral: “as dívidas têm de ser pagas” é um mandamento inquestionável que pouco ou nada deve à economia. E é por isso que conhecemos a dívida mais como forma de punição do que outra coisa: sabemos o que é ser-nos cobrada uma dívida que nunca contraímos e que toda a gente sabe que nunca contraímos. Mesmo que nunca tenhamos estado em dívida para com ninguém, conhecemos e sentimos a culpa de dever alguma coisa, seja um país ou um simples tecto. Tal como as 41 famílias de Azeitão. A dívida serve para nos convencer de que “vivemos acima das nossas possibilidades” quando apenas usufruímos de um direito fundamental. E, no caso de Azeitão, com a cruel contradição de os moradores terem pago as casas.

O “vivemos acima das nossas possibilidades” é, também, a forma de nos chamar à “realidade” – a nós, que estamos na base da pirâmide social – recordando-nos qual o lugar a que pertencemos. É uma forma de nos dizer: “ter casa própria foi uma ilusão e há que voltar ao vosso lugar, desta vez sem ilusões”. Como se ter casa (ou lavar os dentes com a torneira aberta ou comer bifes todos os dias) nos tivesse elevado a uma condição que não é a nossa ou nos tivesse colocado fora da “ordem natural das coisas”. Como se ter casa não fosse para qualquer um. Atirar sistematicamente o fardo da “vida acima das possibilidades” para aqueles que menos têm é uma das mais claras expressões de que o que está em curso é um programa de luta de classes.

Finalmente, Azeitão recorda-nos outra coisa, esta talvez menos presente noutras situações em que o direito à habitação está em causa. As casas destes dois bairros de Azeitão foram construídas por uma cooperativa de habitação, um modelo económico reconhecido pela constituição portuguesa com o propósito de servir de alternativa ao mercado e à forma de organização económica capitalista. Sucessivas leis, promulgadas desde o final dos anos 80, empurraram as cooperativas para uma lógica que lhe era antagónica e levaram-na a jogar o jogo com regras que não eram as suas. O regime de propriedade cooperativo foi alterado e fortemente desvirtuado (no cooperativismo habitacional, a propriedade não é nem privada nem pública, é colectiva, em parte para que as situações de incumprimento individual, no decorrer do pagamento da casa, não impliquem um despejo ou neguem o direito a ter habitação) e as cooperativas, desprovidas de financiamento em condições favoráveis, quando elas próprias substituiam ou complementavam um Estado ineficaz no seu dever de providenciar habitação digna e acessível, viram-se obrigadas a contrair empréstimos bancários, com juros elevados, para cumprir as obrigações que tinham assumido. É, em suma, a história da demissão do Estado em assegurar o direito à habitação e a entrega quase exclusiva da provisão de oferta habitacional ao crédito bancário e aos especuladores. A maior parte das cooperativas não é isenta de culpas, pois aceitou essas condições com agrado, vendo aí uma janela para enriquecer. Mas aquilo de que os moradores de Azeitão são lembrados frequentemente, em particular nos seus contactos institucionais, é de que em causa está, também, um ataque a todos os projectos colectivos e a tentativa de destruição de todas as experiências e de todas as ideias que tentam ir para lá da lógica do mercado (e, em certa medida, também procuraram autonomizar-se do Estado). Os moradores de Azeitão são punidos porque procuraram ver assegurado o direito fundamental a ter uma habitação através de uma cooperativa e não através de um empréstimo ao banco. É-lhes dito frequentemente: “aqui está a prova de que os projectos colectivos não resultam”. O que encontramos em Azeitão é, portanto, mais um passo na construção desta enorme máquina de desesperança, que nos diz que não há alternativa, que nos pede para render, que nos pede para desistir e entregar as nossas vidas.

Há que ter todas estas coisas presentes quando lutamos por construir uma nova narrativa, em que a habitação seja um direito e não um privilégio e em que ser despejado não seja uma inevitabilidade. Há que responder que, mesmo que alguma vez tivéssemos vivido acima das nossas possibilidades, sempre vivemos abaixo da nossa dignidade e que, por isso, queremos mais.

Diogo Duarte