A
6 de Março Maria suicidou-se. Dia em que iria ser
despejada por prestações em atraso ao banco, agentes de execução de uma ordem de despejo e militares da GNR encontraram-na em casa sem vida...
O
que enfrentava Maria, será sempre difícil de saber, mas podemos,
pelo menos, tentar avaliar algumas questões, duríssimas, que se
colocam perante uma situação tão violenta como esta.
O
sentimento de culpa de quem contraiu uma dívida e não a paga. Responsabilizada por ter contraído um crédito e parecer que é uma escolha sua
comprar casa - apesar de toda a política ter direcionado, senão
obrigado, as pessoas a fazê-lo, pois o arrendamento não era (nem é)
alternativa. Ter assinado um contrato que atribui toda a responsabilidade a quem o assinou (e aos fiadores, muitas vezes familiares, com tudo o que isso implica). Não honrar o pagamento de um
crédito é motivo de censura, mesmo que o que se ganha deixe de ser
suficiente para pagar. Quem não pague as suas dívidas é culpado,
assim prevê a sociedade disciplinadora da dívida, por onde tudo
hoje passa.
Associado
ao sentimento de culpa, está o isolamento de quem vive um problema
como este: a culpa gera vergonha, o constrangimento da exposição.... além disso, é difícil encontrar quem possa ajudar.
Ser
posto/a na rua pela polícia e agentes de execução é muito
humilhante e violento, certamente um evento tão traumático, que nem
todos/as lhe conseguem sobreviver.
Maria poderia também saber que mesmo depois de despejada, se a venda da casa
não perfizesse o capital em dívida, não se livraria de novas
prestações, uma dívida que a iria perseguir para a vida. Como se
poderia ela levantar de novo, pagar outra casa, sustentar a família?
Provavelmente a crise abalou a vida de Maria, uma crise que não provocou, mas antes instituições bancárias como a que a iria despejar. Essa crise e as
políticas impostas que se lhe seguiram, provocaram problemas
profundos, empobreceram a sociedade, famílias que
viram os seus rendimentos vigorosamente cortados. Nos anos dourados do crédito à habitação e de desenvolvimento da bolha imobiliária os bancos
fizeram um festim bilionário, os mesmos que
organizam lavagem de dinheiro, fuga aos impostos, transferências
para offshores, corrupção (veja-se tudo o que se tem sabido
recentemente), depois deram-se ao luxo de ir à falência e serem
prontamente resgatados pelos Estados e, ainda assim, despejam implacavelmente quem deixe de cumprir três prestações.
Ao
nível da política não há ajudas ou alternativas para as famílias em situação de sobre-endividamento ou
incumprimento bancário, que disparou precisamente após a crise. Os
bancos foram salvos, mas as pessoas não viram quaisquer medidas de
contingência e de proteção. Na verdade pagaram e continuam a pagar a crise dos primeiros.
O anterior governo criou um mecanismo de proteção que era no mínimo hipócrita: anunciava ajudar as famílias sobre-endividadas, mas os critérios eram difíceis de satisfazer cumulativamente. Além disso, as famílias não tinham conhecimento destas medidas nem eram informadas pelas entidades obrigadas a fazê-lo (os bancos, claro). Entretanto, esse regime caducou a 31 de Dezembro de 2015. Há um ano, a associação Habita alertou para a falta de um regime de proteção nestas situações, no âmbito das reuniões com o BE, o PS e o governo, no chamado grupo de trabalho da habitação, cujo relatório, já feito, não saiu até hoje (já lá vão 9 meses). Anunciou-se que se iria fazer alguma coisa em relação ao assunto, mas não se fez nada. Situações como a de Maria deveriam pesar na consciência deste governo, atempadamente alertado para a situação, mas não pesam... mais aborrecido será sempre o telefonema de um banqueiro.
Não se sabe quantas pessoas perderam a sua casa nestas circunstâncias, e quantas podem estar em risco. Não se sente necessidade de o saber, muito menos de qualquer medida que vise defender as vítimas da política única de compra de casa própria e da crise.
Porque Maria morreu e por tudo isto é que esta situação, além de
terrivelmente trágica, é muito vergonhosa e sintoma gritante da
sociedade e da política que temos. É que poucos se preocupam ou indignam com os
despejos por motivos económicos (pelos bancos, senhorios, autarquias) e a forma como continuam a
acontecer demonstra total insensibilidade, uma banalização
da violência.
Hannah Arendt ao estudar o regime nazi falou-nos de sistemas político-institucionais e burocráticos que trivializam a violência, que banalizam o mal. É a falência do pensamento. Urge pensar! Urge questionar o que é hoje normalizado, que valores defendemos, quem salvamos e quem deixamos cair.
Maria não deveria ter caído, Maria não deveria ter sido sujeita a esta escolha tão atroz.
Rita Silva