segunda-feira, 17 de abril de 2017

CARTA ABERTA EM DEFESA DA DIGNIDADE HUMANA E DO DIREITO À HABITAÇÃO


Imaginem-se a viver na completa escuridão. Imaginem que, em vossa casa, de onde podem avistar uma enorme pilha de lixo, não seria possível conservar alimentos, ver televisão ou carregar o telefone. Imaginem-se ainda no pátio dessa mesma casa, onde há muitos meses já não há luz ou água, a dar banho aos vossos filhos na rua. Imaginem o que seria se eles não tivessem condições de prosseguir os estudos ou que vocês não pudessem dizer sequer onde moram por medo de serem imediatamente discriminados. E imaginem se um dia, sem qualquer notificação ou aviso prévio, essa vossa casa, vosso único tecto, fosse demolida sem que nenhuma solução alternativa vos fosse apresentada. Convidamos-vos a pensar o que seria viver na nossa pele, mesmo que por um só dia… e a imaginar o que seria a sensação de serem tratados como dejetos a serem despejados. 

Nós, moradores de alguns bairros autoconstruídos e de realojamento da Área Metropolitana de Lisboa, decidimos dirigir-vos esta carta aberta na tentativa de denunciar e garantir que estas e outras situações semelhantes deixem de acontecer. Tomamos a liberdade de vos escrever uma vez que até hoje nem as Câmaras Municipais nem o Estado central, ambos com competências na área da habitação, têm sido capazes de proporcionar soluções habitacionais condignas às nossas comunidades. Somos famílias inteiras confinadas, discriminadas diariamente, dentro e fora das nossas casas, e sem quaisquer condições dignas de vida, incluindo água, luz ou saneamento. Além de tudo, não somos tidos em consideração para nenhuma das resoluções fundamentais que tocam as nossas vidas e existência, em suma, não somos tratados como humanos. Para nós, o direito a uma habitação condigna parece não passar de um sonho. 
Apesar de tudo, tentamos viver o dia-a-dia com dignidade, seja através do trabalho duro que aceitamos como ganha-pão, como por meio da vivência comum, solidária e de entreajuda construída ao longo do tempo e dos anos de luta. A realidade é que vivemos há décadas ora nestes bairros autoconstruídos onde investimos de uso social espaços até então vazios e abandonados, ora nos bairros de realojamento onde fazemos o possível para sobreviver coletivamente. É aqui que convivemos, celebramos nascimentos e casamentos e nos unimos nas perdas. Porém, tal como em muitos outros bairros, de norte a sul do país, enfrentamos situações absolutamente dramáticas que urge resolver.

No Bairro 6 de Maio (Venda Nova, Amadora), desde 2015, e particularmente desde Outubro de 2016, a Câmara Municipal executou operações de despejo e demolição, sem qualquer notificação prévia e sem apresentar uma solução condigna para as famílias excluídas do Programa Especial de Realojamento (PER), que remonta a 1993. Fruto das demolições, vários agregados, compostos por crianças, idosos, doentes e pessoas com deficiência, ficaram desalojados enquanto outros estão sob ameaça de o serem a qualquer momento. A única solução apresentada pela Câmara Municipal e pela Segurança Social até ao momento foi uma estadia – de 15 dias a um mês – em abrigos de pernoita temporários. Alguns de nós que ousaram questionar estes procedimentos foram espancados pela polícia.

No Bairro da Torre (Camarate, Loures), no dia 19 de Outubro de 2016, poucos dias depois da inauguração do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), a empresa Energias de Portugal (EDP) cortou, sem qualquer aviso, o acesso à energia a cerca de 70 famílias que aí vivem, incluindo a iluminação pública. Desde essa altura, vivemos sem energia, privadas de aquecimento e de iluminação. Embora, no final de Dezembro, a Câmara Municipal tenha disponibilizado dois geradores, depois do gasóleo fornecido ter acabado, e sem capacidade económica para pagar regularmente o combustível, ficámos novamente sem eletricidade. Com efeito, a intervenção da autarquia constituiu uma falsa resolução do problema. Para além disso, cerca de um terço dos moradores não tem acesso, há vários anos, à rede de abastecimento de água, (sobre)vivendo por isso, não só sem luz, como sem água. 

No Bairro da Jamaika (Amora, Seixal), cerca de 215 famílias vivem precariamente devido à humidade nas habitações, à falta de um sistema de esgotos adequado e às frequentes inundações das caves, com riscos para a segurança estrutural dos prédios. Em 2015, a Câmara Municipal informou os moradores que deveriam começar a pagar electricidade, anteriormente obtida através da rede pública. Este contrato formalizou-se em Janeiro de 2016, tendo começado o fornecimento de luz em Abril. No entanto, a EDP recusou-se a realizar contractos individuais, estipulando contractos colectivos com a Associação de Moradores. Na intenção da EDP e da Câmara, à Associação caberia o encargo de dividir o custo das facturas colectivas entre os moradores. Contudo, a Associação foi deixada sozinha na difícil tarefa de alcançar um acordo entre os moradores, o que levou a graves conflitos, impedindo o pagamento das facturas. Por isso, após várias ameaças de corte de luz, a Associação foi agora posta em tribunal pela EDP que exige o pagamento de uma soma avultada, calculada a partir deste impasse não resolvido.  
No Bairro da Quinta da Fonte (Apelação, Loures), algumas casas, embora relativamente recentes, têm graves problemas estruturais como humidade e fissuras nas paredes, denunciando a falta de qualidade dos materiais de construção e de manutenção. A ausência de desdobramentos familiares tem conduzido à sobrelotação das habitações. Recentemente, mais de 150 moradores do bairro assinaram uma carta aberta a pedir a melhoria das suas condições de habitabilidade, que foi entregue à Vereadora responsável da Autarquia. Além do mais, várias mulheres com filhos têm sido expulsas das casas que ocuparam, sem aviso prévio e sob o olhar atento e muitas vezes de escárnio da polícia. Imaginem-se nas ruas com os seus filhos: se vissem uma casa vazia, preferiam ficar na rua ou ocupá-la-iam? 

Nós, enquanto pessoas e cidadãos, somos invisíveis uma vez que a nossa situação - de trabalhadores precários ou doentes evacuados sem capacidade de arrendar uma casa no mercado privado - parece passar despercebida aos outros habitantes da cidade. Além disso, as operações policiais violentas nos nossos bairros continuam impunes e ignoradas pela comunicação social. Na maioria destes relatos mediáticos, os nossos bairros, rotulados como “ilegais” ou “problemáticos” aparecem como núcleos de tráfico de drogas, venda de armas e outros crimes, alimentando uma imagem negativa e estereotipada dos lugares onde vivemos. Ao longo dos anos, temos sempre recebido com generosidade nas nossas casas os jornalistas que querem conhecer as nossas comunidades, as nossas histórias e as nossas condições de vida. Porém, em muitos casos, a comunicação social acaba por reforçar a discriminação e a estigmatização com que lidamos diariamente, legitimando, de certa forma, a violência que nos tem atingido. 
No entanto, recentemente, representantes reconhecidos de instituições nacionais e internacionais denunciaram a violação de direitos fundamentais. Em Agosto de 2016, o
Provedor de Justiça recomendou ao Governo a suspensão das demolições e a revisão do PER, por ser considerado um instrumento “manifestamente desatualizado” e por ter implicado procedimentos impróprios. Em Dezembro de 2016, no final de uma visita oficial a Portugal, os Relatores Especiais das Nações Unidas sobre o Direito a Habitação Condigna pronunciaramse também sobre os despejos forçados, que classificaram como violação do direito internacional, e alertaram para o direito a uma habitação condigna, à água e ao saneamento, recomendando ao Estado que definisse disposições legais explícitas que obrigassem ao cumprimento dos direitos humanos fundamentais.
De acordo com o artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Por sua vez, o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos contempla o direito de qualquer pessoa ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Recentemente, o Ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou que Portugal “tem sido um defensor incondicional do Conselho de Direitos Humanos”, o que não se coaduna com o que tem acontecido nos nossos bairros. 
Perante esta situação, nós, os moradores dos bairros acima mencionados, cientes dos nossos direitos enquanto cidadãos, reivindicamos o direito a uma vida melhor e a uma habitação condigna. Isso traduz-se no direito a sermos realojados em condições adequadas, dialogando com as autoridades responsáveis, no respeito pelas comunidades e pelas ligações de vizinhança, tendo em conta a possibilidade de realojamento no mesmo lugar se existir a vontade de ali permanecerem. A este respeito, lembramos que a expropriação dos terrenos é exequível no âmbito do PER e que alguns deles são inclusivamente públicos. Reivindicamos o direito a não aceitar uma casa que não queremos, porque o realojamento sob chantagem é um realojamento autoritário. Numa altura em que as autoridades competentes estão a discutir uma revisão do PER, reivindicamos o direito a sermos informados sobre o que nos vai acontecer, mas, sobretudo, a fazer parte da solução. Queremos que sejam pensadas criticamente, em conjunto com as comunidades envolvidas, outras soluções, que não sejam somente aquelas que foram encontradas até agora, ou seja, uma verdadeira política pública de habitação que responda às nossas necessidades. Não queremos ser realojados em novos guetos, distantes dos centros urbanos e afastados dos nossos lugares de trabalho. Não queremos um novo PER igual ao anterior, queremos ser realojados com dignidade e tratados com o respeito a que cada ser humano tem direito.
Esta carta é o início de um novo ciclo de luta, de uma batalha conjunta de cidadãos e cidadãs sujeitos/as a condições desumanas de habitação. Enquanto moradores/as de bairros sociais e de autoconstrução, pretendemos chamar a atenção, não apenas sobre o que nos tem acontecido, mas sobre o que vai acontecendo um pouco por todo o país, com pessoas a quem o salário já não chega para responder a todas as dimensões económicas da vida, sobrecarregadas sobretudo pela habitação. Lutamos não só por nós, mas com todos uma vez que, enquanto a sociedade não perceber o quão errada e perversa é esta situação, será difícil mudar alguma coisa.

Lisboa, 28 de março de 2017
Assembleia dos moradores dos bairros 6 de Maio (Amadora), Bairro da Torre (Loures), Bairro da Jamaika (Seixal), Quinta da Fonte (Loures)

Apoio:   Habita - Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade,  Gestual - Grupo de Estudos Sócio-Territoriais e de Acção Local da Faculdade de Arquitetura da UL, Chão - Oficina de Etnografia Urbana,  Paróquia de Camarate,  Secretariado diocesano de Lisboa da pastoral dos ciganos

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