quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A cidade (destrutivamente) criativa – apontamentos críticos



É já no próximo mês de Setembro que, em Santa Maria da Feira, se irá realizar mais um TEDX, subordinado à temática da criatividade urbana, chavão fundamental para quem quer estar na vanguarda do planeamento e da gestão urbana. No entanto, a tese da cidade criativa, cujos contornos foram originalmente delineados por Richard Florida, tem já alguns anos e tem sido justamente criticada na medida em que, entre outros aspectos, reduz a criatividade a mero instrumento de crescimento económico e competitividade. Para este autor, e outros que, com diferentes matizes, seguem a mesma orientação, a criatividade é hoje o principal gerador de vantagens competitivas e uma das mais valorizadas mercadorias. Na feroz e implacável atmosfera competitiva do capitalismo criativo do século XXI, acrescenta ainda Florida, a criatividade é absolutamente central para a produção de cidades de sucesso. Por conseguinte, estas precisam de se moldar à imagem da classe criativa – vagamente definida como o conjunto de ocupações profissionais que vai dos artistas e programadores (núcleo super-criativo) aos peritos nas áreas da administração, gestão e serviços jurídicos (profissionais criativos). Supostamente, é esta classe que atrai as empresas de alta tecnologia e elevado potencial de crescimento. Por outro lado, a criatividade e os membros da classe criativa são atraídos para contextos que apresentem aquilo que Florida designa como 3Ts do desenvolvimento económico: tecnologia, talento e tolerância. Com base num conjunto relativamente vasto de índices estatísticos (ex: gay index, talent index, melting pot index, bohemian index) sustenta-se que para um determinado lugar atrair pessoas criativas, gerar inovações e estimular o desenvolvimento económico, deve possuir simultaneamente esses três atributos. Assim, as cidades mais bem sucedidas são aquelas que conseguem criar uma atmosfera liberal e boémia – capitalismo socialmente tolerante – aberta a todas as manifestações de criatividade e diversidade e capaz de atrair os membros mais empreendedores e dinâmicos da classe criativa.
            As críticas a esta abordagem são muitas e felizmente não se fizeram esperar. Por exemplo, considera-se que a retórica da cidade criativa é marcada por uma forte tendência para reduzir e simplificar excessivamente os processos de desenvolvimento regional e urbano. O argumento  X→Y (onde X é a classe criativa e Y o desenvolvimento económico local) negligencia as complexas interrelações subjacentes à formação de um contexto urbano criativo. Por outras palavras, a criatividade urbana não pode simplesmente ser importada para as cidades por intermédio de hackers, skaters, gays e boémios de todos os tipos pois é algo que se desenvolve através de uma complexa (e altamente indeterminada e contingente) teia de relações de produção, trabalho e vida social. Enquanto conceito, a classe criativa tem sido também acusada de se basear num entendimento inadequado da criatividade humana; ao mesmo tempo reducionista – classe não passa de uma categoria taxonómica com fronteiras obscuras – e determinista – causalidade surge associada a uma classificação rígida baseada no rendimento e na ocupação profissional.
            Por outro lado, abordagens (instrumentais) centradas na cidade criativa parecem priorizar modos de pensamento oportunista e não estratégico – agenciamentos neoliberais empreendedores – marginalizando e/ou ignorando problemas económicas, políticas ou ambientais de natureza mais estrutural. Glorifica-se um certo homo creativus – sujeito atomizado, intenso e superficial, cosmopolita e elitista, vagamente hedonista e frívolo, culturalmente radical e economicamente conservador – como principal agente da mudança urbana. A política urbana da classe criativa é unicamente desenhada para transformar as cidades em máquinas de fazer dinheiro e não para satisfazer as necessidades dos seus habitantes. Nas mais das vezes, aliás, os problemas estruturais (ex: habitação e espaços públicos, transportes e mobilidade, democracia e governação) permanecem intactos enquanto um novo urbanismo (revanchista) é fabricado à imagem da cidade criativa e das necessidades do homo creativus. A cidade, essa, continua a ser um espaço social profundamente desigual e segregado. Celebra-se assim um espaço desigual no qual um grupo de profissionais quasi-místicos – a classe criativa – é sustentado por um exército invisível de trabalhadores precários e mal remunerados aos quais nunca se pergunta: em que cidade gostariam de viver? Por conseguinte, as preocupações com o bem-estar e a qualidade de vida urbana encontram-se subordinadas a imperativos de desenvolvimento económico e a uma incessante procura de vantagens competitivas cujas consequências nefastas são sempre ignoradas ou minimizadas pelos seus protagonistas. Na verdade, quem não pertence à classe criativa – os membros do tal exército invisível – vê os seus sonhos e aspirações serem sistematicamente menosprezados, ridicularizados e até ostensivamente vilipendiados por gestores, planeadores e decisores urbanos. A sua única salvação passa, necessariamente, por se tornarem mais criativos (e empreendedores).
            Evidentemente, manifestações subversivas de criatividade, formas de intervenção nas cidades que lidem com contradições e conflitos, que se posicionem nas fronteiras da legitimidade jurídico-formal e desafiem a ordem estabelecida – ocupações, centros sociais, hortas comunitárias, pinturas murais, etc. – são excluídas da cidade criativa à la Florida. No entanto, é essa constelação de experiências criativas, protagonizadas por aqueles que são silenciados pela (exclusiva) cidade criativa, que nos pode ajudar a produzir imaginários urbanos alternativos, pós-capitalistas, a ensaiar uma cidade outra em que os dispositivos e meios da sua produção, apropriação e uso sejam devolvidos aos seus habitantes e utilizadores quotidianos e não propriedade exclusiva de um capital financeiro-imobiliário, rentista e parasitário, que vorazmente a consome e destrói. Infelizmente, também não consta que estas experiências urbanas criativas façam parte do programa TEDX.


28/08/2013
André Carmo

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Como os automóveis promovem a desigualdade



Artigo por Yves Engler
Um estudo recente acerca da variação da mobilidade social em cidades norte-americanas descobriu que quanto maior é a segregação geográfica dos residentes menos provável é a ascenção sócio-económica dos mais pobres. Por outras palavras, quanto mais afastadas vivem as diferentes classes sociais mais profunda se torna a desigualdade.
O estudo Equality of Opportunity Project mostra que cidades relativamente compactas tais como São Francisco, Nova Iorque e Boston apresentam maior mobilidade social que cidades de maior extensão como Memphis, Detroit e Atlanta. Em São Francisco, cidade relativamente orientada para o trânsito pedestre, por exemplo, uma pessoa nascida no quintil mais pobre da distribuição de rendimento tem 11% de probabilidade de alcançar o quintil mais afluente enquanto em Atlanta, cidade mais orientada para a circulação automóvel, este número é de cerca de 4%.
Num artigo acerca deste estudo o colunista do New York Times Paul Krugman condenou a relação inversa entre a expansão urbana e a mobilidade social dos pobres (e sem automóvel) incapazes de aceder aos empregos disponíveis. “A cidade pode ser tão extensa”, escreveu ele acerca de Detroit, “que as oportunidades de trabalho se encontram literalmente fora do alcance de pessoas encalhadas nos bairros errados”.
Isto é sem dúvida parte da explicação, mas ignora o impacto político mais amplo da expansão urbana gerada pelo automóvel. Em Stop Signs: Cars and Capitalism on the Road to Economic, Social and Ecological Decay, Bianca Mugyenyi e eu sugerimos que os automóveis privados estimulam políticas de direita (anti-igualitárias) ao acorrentar potenciais atores políticos aos seus empregos, ao reduzir a mistura entre diferentes grupos sociais quando estão em trânsito e atomizar comunidades em subúrbios.
Mas é ainda mais fundamental que isso pelo facto do automóvel privado perpetuar a dominação de classe de múltiplas outras formas. Desde a aurora da era auto que o automóvel tem sido uma instrumento importante para os ricos se afirmarem socialmente. Antes da submissão moderna ao automóvel, um automóvel privado era visto como uma manifestação indiscreta e pomposa de riqueza. Uma edição de 1904 da revista agrícola, Gazeta dos Criadores, chamou aos condutores de automóveis, “uma horda infâme, imprudente e sedenta de sangue de transgressores loucos e ostentatórios” e em 1906 Woodrow Wilson, então presidente da Universidade de Princeton, declarou, “a posse de um automóvel é uma demonstração de riqueza tão ostentatória que irá estimular o socialismo”.
Entre os ricos, o automóvel era popular em parte porque reafirmava o seu domínio sobre a mobilidade, que havia sido ameaçado pelo transporte ferroviário. Antes da sua ascensão em meados de 1800s a elite viajava de cavalo e carruagem, mas a superioridade tecnológica do transporte ferroviário comprometeu a utilidade da carruagem puxada por cavalos. Mesmo para pequenas deslocações, os elétricos tornaram-se o modo de transporte favorito no início de 1900s. Mais acessíveis a várias classes sociais, o comboio e o elétrico esbateram as divisões de classe. O automóvel, por outro lado, oferecia uma forma exclusiva de viajar.
A capacidade do automóvel criar distância social era apelativa para os primeiro compradores. O proeminente historiador automóvel James J. Flink sublinhou que, “aos olhos dos adeptos da inovação, o automóvel parecia oferecer uma solução simples para alguns dos mais formidáveis problemas da vida americana associados à emergência de uma sociedade urbana industrial”.
Num automóvel em trânsito, pode permanecer-se separado daqueles percebidos como socialmente inferiores. Em Down  the Asphalt Path's, Clay McShane escreve acerca do desdém das elites pelos utilizadores de transportes públicos: “os autocarros eram sujos, barulhentos e sobreocupados. Era impossível para um utilizador de classe-média isolar-se de companheiros de viagem percebidos como socialmente inferiores”. Distanciar-se de negros, imigrantes, trabalhadores de colarinho azul e, em geral, daqueles estereotipados como inferiores, era muitas vezes o motivo pelo qual as classes médias se deslocavam para os subúrbios”.
O automóvel tornou possível viver longe dos pobres (ou de qualquer pessoa sem um automóvel). Num dos casos mais extremos de segregação moderna, as pessoas barricam-se em condomínios fechados. Ao longo dos Estados Unidos, especialmente no Sudoeste “automóvel-cêntrico”, milhões de famílias afluentes refugiaram-se nestas residências exclusivas e excludentes.
Se queremos uma sociedade mais igualitária devemos reverter a segregação geográfica e construir comunidades e cidades onde as pessoas possam deslocar-se sem automóvel privado.
Artigo de Yves Engler publicado no seu blog pessoal a 8 de Agosto de 2013, disponível em http://yvesengler.com/2013/08/08/inequality-thrives-where-cars-dominate/
Tradução de André Carmo para o HABITA                                                                                             

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Do terrorismo como estratégia de (sub)desenvolvimento urbano – o bairro de Santa Filomena, Amadora



Mais uma vez, à semelhança do que já havia sucedido num passado recente, Joaquim Raposo, arquétipo de um tipo particular de governação (endémica no território nacional), que ao mesmo tempo que estabelece uma relação de perfeita simbiose com os poderes imobiliários se revela parasitária do desenvolvimento local, mandou afixar no dia 17 de Julho, por intermédio da Polícia Municipal, avisos de demolição no bairro de Santa Filomena, na Amadora. O terrorismo psicológico, a pressão constante sobre os moradores, a estratégia imoral é reveladora, não do carácter de Raposo, mas de uma forma específica de exercício do poder político que não olha a meios para atingir os seus fins.

Refém de promessas eleitorais (como mostra a pressão exercida pelos moradores da urbanização de Vila Chã) e de especuladores imobiliários (recorde-se a recente notícia de um caso (arquivado) que demonstrava a existência de corrupção e tráfico de influências entre o edil e a empresa Urbidoismil (alegadamente, é claro)), Raposo teima em atropelar (com bulldozers) um dos mais elementares direitos humanos – o direito à habitação – que se encontra vertido num vasto conjunto de tratados e convenções subscritas pelo Estado Português e plasmado na sua Constituição no artigo 65º. Infelizmente, existência de jure que teima em não se materializar de facto.

Em última instância, é sobre o inefável Raposo que impende a responsabilidade desta flagrante violação dos direitos humanos. Não obstante, é importante também sublinhar – ferindo ostensivamente susceptibilidades (a reciprocidade é um princípio de justiça e as susceptibilidades dos ofendidos pelo lamentável desenrolar deste caso, e doutros similares, são sempre feridas de morte) – o papel do racismo institucionalizado – subtil, no caso dos assistentes sociais que procuram, e têm-no conseguido, desmoralizar os moradores; flagrante, no caso das forças policiais, cujo registo criminal atinge já proporções biblícas. É um facto: a mão direita e a mão esquerda do Estado, funcionam sempre melhor em conjunto. Primeiro violenta-se, depois conforta-se e apazigua-se, conquistando-se os corações e as mentes (dos mais incautos). Desprovidos das mais elementares noções de humanismo ou empatia e açicatados pela predominante cor negra de uma comunidade cabo-verdiana, infligem, à margem da lei, danos irreversíveis a um espaço social, também ele, incapaz de resistir, fragilizado que está pela pobreza, pelo desemprego e pela estigmatização.

A bem montada estratégia terrorista (é preciso reconhecer o mérito onde ele existe) que, gradualmente, vai fazendo o seu caminho, instala o medo nos moradores e torna muito mais fácil à restante sociedade, amedrontada, inerte e alheada, assobiar para o lado, fingir que nada se passa e assim tornar-se cúmplice do crime que está em curso. O HABITA, bem como outros movimentos, organizações e cidadãos, que ainda preservam alguma capacidade para se indignar e pensar criticamente, tem denunciado sistematicamente este caso que, embora aconteça à escala urbana, revela alguns dos mais preocupantes e estruturais problemas da sociedade portuguesa.

A (sub)urbanização da injustiça inscreve-se de modo cada vez mais fundo e duradouro, contribuíndo para a produção de uma paisagem urbana desoladora e disfuncional. A segregação urbana, económica e cultural, é uma das marcas características do processo de desenvolvimento da metrópole lisboeta. Santa Filomena, Cova da Moura, Vale da Amoreira, 6 de Maio, Quinta do Mocho, entre muitos outros bairros, ilustram-no. A transformação destes espaços, num sentido oposto aquele que desejam os poderes rentistas-imobiliários (mercadorização/privatização/estetização) implicará sempre que os seus habitantes se auto-organizem e procurem tomar nas suas mãos o destino dos espaços que lhes pertencem, que quotidianamente ajudam a (re)construir e cujo futuro depende, em larga medida, da sua capacidade de forjar solidariedades e subjetividades políticas atuantes que, com audácia e combatividade, procurem resistir e contrariar o poder hegemónico da cidade feita para o lucro. A cidade é das pessoas. É para elas (e por elas) que deve ser incessantemente (re)construída.

André Carmo
06/08/13