sexta-feira, 6 de março de 2015

Dívida(s), Habitação e Estado Social


Começo por aquilo que foi o nosso ponto de partida e que ainda hoje tem um peso relevante: todas as semanas: moradores/as de vários bairros da Amadora, a Associação Habita, outras associações, coletivos e pessoas solidárias, são obrigadas a fazer piquetes e outras ações de mobilização, uma vez que ali, ao longo dos anos, a Câmara Municipal em concertação com as forças policiais organizam o despejo sistemático, forçado e violento de famílias que não têm acesso ao mercado da habitação. Estas entidades sabem perfeitamente da situação de pobreza e enorme vulnerabilidade destas famílias que habitam em casas autoconstruídas há muitos anos – única forma encontrada de resolver a sua situação, perante a ausência de políticas públicas que a estas respondessem. No entanto, e apesar do artigo 65º da Constituição da República, forças do Estado retiram o único teto destas famílias, sem providenciar nenhuma solução adequada. Também não há um sentimento de indignação sobre esta situação na sociedade em geral.

Esta situação não é, ao contrário do que muitos pensam, apenas um caso particular da Amadora, é antes um reflexo visível (ou a que se deu visibilidade) da ausência total de respeito por um direito fundamental, direito humano, social - o direito à habitação - e que afeta muito mais gente, atacada também pelo desemprego ou redução drástica de rendimentos e que lida constantemente com dificuldades – e risco de despejo - no pagamento do crédito à habitação ou do arrendamento. Falemos claro, o direito à habitação não é reconhecido no nosso país, e parece estar normalizada a ideia de que, se queremos casa, pagamos; se não, RUA! No país onde o ordenado mínimo é regra para muitas famílias e o rendimento médio dos mais baixos da Europa, fica muito complicado.

O que é que isto tem que ver com a dívida? O facto de a política pública de habitação ter sido o incentivo ao endividamento: Foram créditos bonificados – subsídios diretos aos bancos a sair do Orçamento de Estado – isenções fiscais para a compra de casa e o a construção direta de infraestruturas pelo Estado em urbanizações privadas em desenvolvimento. O investimento do Estado foi considerável, mas não no desenvolvimento de uma política de habitação para todos/as, adequada ao rendimento das pessoas; antes a compra através do crédito em que, quanto mais crédito e mais tempo para pagar, mais caras as habitações seriam, mais endividadas as famílias e, também, mais endividado o país. Foi à custa desta política que aumentámos drasticamente a dívida externa (mas, a componente privada). Esta política deu grandes ganhos e grande alavancagem à banca para, apoiada nos milhões de créditos à habitação que fez, divagar sobre outras jogadas financeiras. Os bancos conseguiam com este negócio emprestar três vezes para o mesmo pedaço de chão: compra do terreno, construção do empreendimento e compra da casa.

Foi o elevadíssimo nível de endividamento que veio justificar a narrativa da entrada da troika em Portugal, o excesso de endividamento, muitas vezes confundindo-se (não inocentemente) dívida privada com dívida pública. Na verdade, o que se fez foi proceder a uma enorme transferência de dívida privada (dos bancos) para dívida pública. Tal como o subprime nos Estados Unidos, também aqui, o imobiliário é central nos mecanismos que produziram a crise, através de uma política neoliberal, de mercantilização e financeirização, de um direito fundamental que devia ser parte de um Estado Social desenvolvido.

Mas a história não fica por aqui: com a entrada da troika, o memorando assinado prevê, no seu sexto ponto, a liberalização total do mercado de arrendamento o que significa maior facilidade em despejar e aumento das rendas antigas. Porquê? Porque é que a troika e o governo português, para concretizar este empréstimo de dinheiro a Portugal, quer intervir no mercado de arrendamento privado? Porque há uma nova estratégia do capital: o “ataque” do mercado aos centros das cidades para investimento no turismo, na reabilitação para sectores altos da sociedade, para investir também no arrendamento, uma vez que o modelo anterior de construção desenfreada e venda de casa própria parece estar esgotado para as próximas décadas. É aí, nos centros, que se concentram mais contratos de arrendamento que importava precarizar. Ou seja, mais do mesmo, o arrendamento já há muito que era mais caro do que a própria compra (se visto mensalmente), a política de habitação continua a ser o mercado liberalizado, sem que de todo este funcione no modo perfeito: os preços não baixam, apesar do excesso de casas vazias que temos (uma em cada cinco).

Assim, tal política afeta famílias de muitas maneiras: mais de 700 000 famílias vivem em sobrelotação, um número desconhecido de pessoas vive em quartos e pensões degradadas, em anexos, a continuação da existência de barracas, pessoas que pagam a casa e não têm o que comer, os jovens que não conseguem sair da casa dos pais ou que para esta voltam. É aos mais pobres que esta realidade mais afeta: 30% das famílias que auferem menos do que 60% do rendimento médio, paga mais de 40% em habitação. É uma taxa de esforço muito elevada para este nível de rendimentos.

Estas são as consequências da política de apoio ao crédito, e ao endividamento, que apenas desenvolveu 2% de habitação social – de má qualidade, estigmatizada, pobre para pobres – e não investiu de todo numa regulação e promoção do mercado de arrendamento.
Mas o governo diz que em matéria de habitação e reabilitação urbana está tudo resolvido. Na Agenda 20-20 a liberalização do mercado de arrendamento é a chave da solução.

Pois que a habitação está fora do Estado Social no nosso país. Quando se referem a este falam em saúde, educação e segurança social, mas esquecem sempre a habitação. Mas atenção, se não seguem o mesmo destino, estes sectores fundamentais, no processo crescente de mercantilização. A habitação foi e é percurssora deste modelo neoliberal altamente excludente. E tal está de tal forma enraizado na nossa sociedade que até vários sectores de dita esquerda têm dificuldades em ver uma política de habitação fora do mercado. É que, para isso, seria necessário confrontar o poder excessivo da propriedade, regular o mercado de arrendamento, multar de forma pesada o património vazio, e não só...

Rita Silva


Sem comentários:

Enviar um comentário