Em fim de mandato e depois de uma panóplia de decisões
legislativas e regulamentares já tomadas sobre várias matérias da habitação[1], o
governo coloca em discussão pública (muito pouco divulgada) a sua Estratégia
Nacional para esta[2],
cuja participação está prevista até hoje, 29 de Maio. Pensamos que este é um
assunto deveras importante para as nossas vidas, as nossas cidades, para o
país e exigia, desde logo, um amplo debate na sociedade. O IHRU deveria ter
assumido esse papel de impulsionador e mediador de tal processo. Aqui está uma
análise do que nos parece que é a orientação geral do texto.
O texto divulgado[3]
tem um diagnóstico interessantíssimo, dando-nos conta dos números produzidos
pelo INE, para constatar que:
(esses) “indicadores
atrás apresentados mostram-nos que à medida que aumentou a produção e oferta de
habitações, estas foram ficando cada vez mais caras, ao contrário do que seria
expectável. E este aumento verificou-se de uma forma que divergiu
acentuadamente da evolução do rendimento disponível das famílias portuguesas.
As políticas de
promoção e financiamento à aquisição de habitação própria, que poderiam ter
compensado a retração do mercado de arrendamento, acabaram por ter um efeito
perverso no aumento dos preços e contribuíram para que o Estado, a banca[4], as
empresas e as famílias acumulassem uma dívida muito elevada, agravada pelo
facto de estar associada a um elevado número de fogos devolutos. O investimento
público e privado que lhe esteve associado não serviu nem contribuiu para
facilitar o acesso das famílias à habitação.”
Ou seja, o que este trecho nos diz exatamente é que, se nos
últimos trinta anos a oferta aumentou exponencialmente, o número de devolutos
quadriplicou, mas os preços aumentaram na mesma medida, num processo
especulativo sem precedentes, então, o mercado – do equilíbrio da oferta e procura
- não funciona. Só pode ser essa a conclusão. No entanto, não consta no
relatório, assim como o problema da especulação. A omissão destes factos é
digna de nota. Não se compreende mesmo como é que, “não havendo atualmente um deficit habitacional, existe um problema de
acesso à habitação”.
Infelizmente o relatório não nos dá dados precisos sobre
algumas questões como o sobreenvidamento relacionado com o crédito à habitação,
o número de despejos dos últimos anos, o número de famílias em lista de espera
nos diversos municípios e no próprio IHRU, ou qual a atual taxa
de esforço com encargos na habitação dos diferentes escalões e qual seria a
mais indicada. Mas diz-nos que:
A política desenvolvida, com todo o apoio do principal
partido do governo, “gerou um elevado
número de famílias na condição de proprietários de habitações, que não dispõe
de meios para suportar os respetivos custos com impostos, condomínios, seguros
e obras de conservação. Trata-se de uma realidade cuja dimensão tem vindo a
aumentar….”
Na verdade a assunção de tais erros de governação, fáceis de
assumir porque não têm quaisquer consequências e, sobretudo não indo ao fundo
da questão, serve apenas de pretexto para a mudança de estratégia, na verdade
perfeitamente alinhada com os interesses do capital, a banca, os fundos de
investimento imobiliário, os promotores imobiliários, e que é a reabilitação
urbana e o arrendamento caro, através do impulso do mercado. Corrige-se então o
problema com o mesmo problema.
Ou seja, o governo, com os donos do mercado, pretendem “dar confiança aos investidores”, leia-se,
liberalizar as leis do arrendamento para desproteger os inquilinos (já está),
liberalizar as leis da reabilitação urbana (já está) para esventrar edifícios
antigos à vontade, ou não passar pelas maçadas do licenciamento municipal, e “atrair investimento privado” dando isenções fiscais várias (que são
subsídios indiretos) e subsídios diretos que vêm agora no novo quadro
comunitário de financiamento e na forma de reabilitação do espaço público (que
deverá seguir as regras de prevenção do crime, atenção, seja lá o que isso for),
para, segundo eles, promoverem o arrendamento que, de acordo com as regras do
mercado, se vai tornar mais acessível: “dinamizem
o mercado de arrendamento, de forma a criar um segmento de oferta de rendas a
preços acessíveis”. Novamente o mercado, a grande solução dos problemas da
habitação que, na verdade, vai sobretudo acelerar os processos de gentrificação
em curso, de expulsão da classe trabalhadora, precária e empobrecida, dos
locais apetecíveis das nossas cidades. É que os subsídios previstos no novo
quadro comunitário, e para os quais é produzida esta estratégia, vão financiar a reabilitação
urbana e o arrendamento, mas sem quaisquer contrapartidas de controlo de preços, e por isso vai ser o
arrendamento caro, subsidiado por nós, virado para as classes altas,
porque é assim que se ganha dinheiro, agora nos centros das nossas cidades (as
periferias interessam pouco e já cresceram o que tinham de crescer, pelo menos
por agora).
Tanto o governo como o capital sabem que o modelo anterior
estoirou, nunca mais será como antes, a construção desenfreada, o endividamento
das famílias e a especulação não vai continuar da mesma forma, e assim o que
interessa é a mudança apoiada da estratégia, leia-se subsídios públicos e
liberalização, sem quaisquer contrapartidas, que na verdade não vão melhorar a
situação de quem não consegue ter acesso ao mercado. A mesma receita para a
especulação, claro que em nome do acesso à habitação, em nome da
sustentabilidade, da reabilitação, da eficiência energética, mas nenhuma medida
clara sobre o controlo do preço do arrendamento, nenhuma contrapartida clara aos
subsídios aos privados.
Sobre habitação social, da qual apenas se diz que é
insuficiente (120 000 fogos, uma percentagem mínima que não chega a 4%) e
que a solução é promover a mobilidade social, a entrada e saída de pessoas
desses bairros através de uma porta giratória, que promove sobretudo a
precariedade e instabilidade nos bairros, sem nenhuma referência a aumentar
este parque habitacional e que é necessário incentivar o mercado social de
arrendamento onde um T1 em Lisboa não custa menos de 450 euros. Sobre os
devolutos apenas a “agilização”
do IMI….
Por fim, e muito importante, nunca se fala na habitação como
um direito, um direito constitucional, humano, social, fundamental à vida.
Rita Silva
[1] Nova lei
do arrendamento urbano, nova lei das rendas sociais, regimes para famílias com
problemas no crédito à habitação, reabilitação urbana (?) e IMI (?).
[2]https://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/habitacao/EstNacHabitacao/Estrategia-para-a-habitacao.pdf
[3] Que pode
ser consultado aqui XXXXX
[4] É interessante
que diz que a banca acumulou uma dívida considerável, mas não fala nos lucros
astronómicos durante décadas.
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