O legalismo é suficiente para que um
direito fundamental consagrado na Constituição Portuguesa seja
ignorado pelos poderes públicos? Ou os poderes públicos servem
outros interesses que não a CR?
Ontem houve uma reunião convocada pela
associação de moradores do Bairro da Torre na sua justa luta para
resolver um problema maior do bairro: voltar a ter electricidade no
bairro, tanto nos contadores individuais como na iluminação
pública.
Edp, ANA (aeroportos de Portugal), ANAC
(Autoridade Nacional para a Aviação Civil), Segurança Social,
Saúde foram convidadas mas só as autarquias deram a cara: parabéns
ao Presidente da JF de Camarate e à Vereadora da CML ali presentes e
aos Bombeiros de Camarate que ofereceram as instalações.
Raramente vi uma
afirmação mais genuína de dignidade ferida. Os moradores
reclamavam “apenas” que lhes voltassem a ligar a electricidade e
partilharam simplesmente o que é, nos dias de hoje, viver sem luz:
escuridão às cinco da tarde, impossibilidade de as crianças
fazerem os trabalhos da escola, não chegar o dinheiro para comer
porque o frigorífico está parado e comprar todos os dias sai mais
caro, bebés com medo do escuro, o medo do fogo ateado por velas tombadas...
A electricidade foi cortada a 19 de
Outubro passado por procedimentos que parecem revelar bastantes
ilegalidades, além do óbvio ataque à vida e aos direitos humanos
daquelas pessoas.
O que aconteceu então? Pelo que se foi
percebendo ao longo da reunião, a ANA aeroportos de Portugal mandou
a EDP cortar a luz no bairro porque (pasme-se!) ali havia perigo de
incêndio. Também ouvi dizer que a preocupação da ANA seria que o
bairro perturba a manobra dos aviões! Como se usar velas não
aumentasse risco de incêndio e como se a luz de 80 barracas se
sobrepusesse à iluminação que as rodeia.
Em cerca de 40 anos que o Bairro leva*, nunca a
ANA contactou os moradores para nada, nunca tinha mostrado qualquer
sinal de que queria cuidar do terreno, NADA. Ao que parece avisou
sobre a intenção de cortar a luz uns dias antes. A Câmara de
Loures tem feito o que pode para reverter a situação, mas esbarra
num obstáculo “intransponível”: afinal a ANA, que mandou cortar
a luz, já não se assume como dono do terreno e ninguém sabe ao
certo de quem seja! Talvez a ANAC?
É extraordinário: um título de
propriedade não é exigido a quem manda cortar a luz a 70 famílias
mas a falta de consentimento de um dono de terreno que nunca apareceu
nem mostrou interesse serve para que essas 70 famílias estejam há
quase 2 meses sem luz.
A solução apresentada pela CML é que
se aguarde (pacientemente?) pelo dia 16, em que a CML será recebida
pela ANAC: aí, então, se verá SE a ANAC é dona e SE autoriza a
Câmara a religar a electricidade, pelo menos provisoriamente. Ou
seja, não foi possível fazer vigorar a urgência de ter 250 pessoas
a viver sem luz, nem é possível assegurar que o verdadeiro dono foi
encontrado.
Assim, o que se pede a estas pessoas é que pacientemente
aguardem um possível NÃO!
Maria João Costa
Maria João Costa
*O Bairro da Torre em
Camarate, que os jornais costumam chamar “bairro clandestino”
(que é isso?), é um bairro que nasceu há mais de 20 anos com casas
construídas pelos seus moradores, gente chamada a vir construir o
que agora é o Parque das Nações, em terrenos vagos perto do
aeroporto de Lisboa. Em 2011 a maior parte das pessoas (então cerca
de 1500) foi realojada, restaram cerca de 70 famílias (250 pessoas)
que ali sobrevivem, sem capacidade para pagar uma renda no mercado de
arrendamento livre.
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