segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A propósito dos direitos humanos: a sacralização da propriedade privada



O legalismo é suficiente para que um direito fundamental consagrado na Constituição Portuguesa seja ignorado pelos poderes públicos? Ou os poderes públicos servem outros interesses que não a CR?

Ontem houve uma reunião convocada pela associação de moradores do Bairro da Torre na sua justa luta para resolver um problema maior do bairro: voltar a ter electricidade no bairro, tanto nos contadores individuais como na iluminação pública.
Edp, ANA (aeroportos de Portugal), ANAC (Autoridade Nacional para a Aviação Civil), Segurança Social, Saúde foram convidadas mas só as autarquias deram a cara: parabéns ao Presidente da JF de Camarate e à Vereadora da CML ali presentes e aos Bombeiros de Camarate que ofereceram as instalações.

Raramente vi uma afirmação mais genuína de dignidade ferida. Os moradores reclamavam “apenas” que lhes voltassem a ligar a electricidade e partilharam simplesmente o que é, nos dias de hoje, viver sem luz: escuridão às cinco da tarde, impossibilidade de as crianças fazerem os trabalhos da escola, não chegar o dinheiro para comer porque o frigorífico está parado e comprar todos os dias sai mais caro, bebés com medo do escuro, o medo do fogo ateado por velas tombadas...

A electricidade foi cortada a 19 de Outubro passado por procedimentos que parecem revelar bastantes ilegalidades, além do óbvio ataque à vida e aos direitos humanos daquelas pessoas.
O que aconteceu então? Pelo que se foi percebendo ao longo da reunião, a ANA aeroportos de Portugal mandou a EDP cortar a luz no bairro porque (pasme-se!) ali havia perigo de incêndio. Também ouvi dizer que a preocupação da ANA seria que o bairro perturba a manobra dos aviões! Como se usar velas não aumentasse risco de incêndio e como se a luz de 80 barracas se sobrepusesse à iluminação que as rodeia.
Em cerca de 40 anos que o Bairro leva*, nunca a ANA contactou os moradores para nada, nunca tinha mostrado qualquer sinal de que queria cuidar do terreno, NADA. Ao que parece avisou sobre a intenção de cortar a luz uns dias antes. A Câmara de Loures tem feito o que pode para reverter a situação, mas esbarra num obstáculo “intransponível”: afinal a ANA, que mandou cortar a luz, já não se assume como dono do terreno e ninguém sabe ao certo de quem seja! Talvez a ANAC?

É extraordinário: um título de propriedade não é exigido a quem manda cortar a luz a 70 famílias mas a falta de consentimento de um dono de terreno que nunca apareceu nem mostrou interesse serve para que essas 70 famílias estejam há quase 2 meses sem luz.

A solução apresentada pela CML é que se aguarde (pacientemente?) pelo dia 16, em que a CML será recebida pela ANAC: aí, então, se verá SE a ANAC é dona e SE autoriza a Câmara a religar a electricidade, pelo menos provisoriamente. Ou seja, não foi possível fazer vigorar a urgência de ter 250 pessoas a viver sem luz, nem é possível assegurar que o verdadeiro dono foi encontrado. 

Assim, o que se pede a estas pessoas é que pacientemente aguardem um possível NÃO!
Maria João Costa

*O Bairro da Torre em Camarate, que os jornais costumam chamar “bairro clandestino” (que é isso?), é um bairro que nasceu há mais de 20 anos com casas construídas pelos seus moradores, gente chamada a vir construir o que agora é o Parque das Nações, em terrenos vagos perto do aeroporto de Lisboa. Em 2011 a maior parte das pessoas (então cerca de 1500) foi realojada, restaram cerca de 70 famílias (250 pessoas) que ali sobrevivem, sem capacidade para pagar uma renda no mercado de arrendamento livre.

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