Cinco
décadas após a primeira utilização do termo gentrificação -
enquanto designação de uma violenta transformação urbana dos
bairros operários londrinos em bairros de classe média- o fenómeno
generalizou-se em zonas estratégicas das cidades, conduzindo à sua
valorização artificial e à expulsão das populações
economicamente mais vulneráveis, incapazes de "pagar o seu
direito à cidade", então progressivamente empurradas para as
margens urbanas.
Enquanto
processo de elitização do espaço urbano, este fenómeno de
substituição populacional tem vindo a afirmar-se no Porto a uma
velocidade vertiginosa e inversamente proporcional ao direito à
cidade. Reflecte-se nas crescentes dificuldades de acesso ao mercado
de arrendamento habitacional, na
monofuncionalização
urbana ou no agravamento da precariedade que caracteriza o trabalho
no sector turístico. Estes fenómenos sociais são hoje facilmente
dissimulados pela limpeza urbana, fachadismo
e dinâmicas lúdicas que têm vindo a animar a Cidade.
No
Porto, este fenómeno surge
associado a um turismo enquanto "tábua de salvação" de
um centro antigo deprimido e abandonado durante anos em prol de uma
política urbana de expansão periférica. A venda da imagem "Porto,
Património Mundial da Humanidade" (1996) surge como pretexto
perfeito para uma transformação especulativa da Cidade -então
classificada-, acelerada nos últimos anos por uma "nova lei do
arrendamento urbano" e pela liberalização dos instrumentos de
gestão urbanística, consequentes de um urbanismo neoliberal.
Num
contexto político-operativo em que a classificação enquanto
património de uma determinada área da Cidade -porque entendida como
fundamental para a nossa identidade enquanto seus habitantes- deveria
garantir a sua defesa perante os processos especulativos e até mesmo
as necessidades vitais da contemporaneidade, deparamo-nos com o
paradoxo de uma extensiva exclusão ao direito de usufruto desta
Cidade e de todo o acesso à cultura que nela se encerra,
formalizado, em parte, pela expulsão dos seus habitantes sob o
pretexto de operações de reabilitação urbana, muitas com vista à
exploração turística. A este fenómeno, as entidades governativas
têm respondido não só com uma posição oficial favorável, mas
também com o apoio financeiro suporte destas dinâmicas urbanas,
entendendo então os próprios habitantes como uma ameaça, enquanto
elementos de resistência ao processo de desenvolvimento económico.
A
própria intervenção arquitectónica a que são submetidos os
edifícios que suportam este entendimento de identidade denota mais
uma espécie de imposto cultural determinado pelo poder público do
que qualquer consciência ou convicção patrimonial, conduzindo ao
desmantelamento das próprias arquitecturas e estruturas urbanas,
suporte da imagem de marca “Porto, Património Mundial da
Humanidade”. Passa o “Porto.” a confundir-se com qualquer outro
ponto, replicável num qualquer parque temático, onde o simulacro de
preservação se afirma enquanto “política de reabilitação
urbana”.
Naturalmente,
a voracidade deste fenómeno urbano não poderá ser desconectada de
uma sobrevalorização institucional do turismo de massas, subjacente
a um conceito de desenvolvimento criado nos Estados Unidos da América
no final dos anos quarenta, associado à emergência de uma sociedade
de consumo de massas e à democratização do lazer, conduzindo ao
enraizamento de uma cultura consumível, simultâneo ao de um consumo
enquanto cultura. Daqui, a perda do património e das dinâmicas que
suportam a civitas;
a perda da cidade, então esvaziada pela sua própria mercadorização.
Estamos
perante um cenário de transformação urbana e social no qual a
resposta pública negligencia qualquer abordagem a fundo e de forma
equilibrada, demitindo-se do seu papel planeador e regulador,
irrompendo de forma isolada – espacial e temporalmente- e
paliativa, perante uma cidade caracterizada por uma crescente
segregação funcional, agravante dos desequilíbrios sociais que
caracterizam o Porto de hoje.
Pensar
o Porto de forma participada a partir dos fenómenos que têm vindo a
assomar-se enquanto resultados da fragilidade em que a cidade
democrática se encontra é o que se tem procurado fomentar, enquanto
activistas que, de forma mais ou menos directa, têm vindo a
desenvolver trabalho de proximidade e de reconhecimento das
problemáticas com que se deparam os que vivem (n)a Cidade1.
Importa agora perceber como poderá este fenómeno ser revertido a
partir de medidas incisivas e direccionadas para quem nela vive e
aqui encontra o espaço da cidadania, promovendo uma desejável
heterogeneidade funcional, correspondente a um ideal de viver,
trabalhar e recrear-se na mesma cidade.
1
Destacam-se os debates conduzidos no 4.º Fórum da Precariedade e
Desemprego “Ninguém fica para trás”, 16 e 17 de Dezembro de
2016 (Precários Inflexíveis) relativo à precariedade no turismo e
na Jornada com os Left Hand Rotation “Gentrificação
em Conversa”, 22 de Janeiro de 2017 (Contrabando- espaço
associativo, Habita65, Left Hand Rotation, Projecto Inducar, Punkto,
The Worst Tours), assim como a campanha em curso “Turismo
precário” (Habita65, Precários Inflexíveis) e o Workshop
relativo aos fenómenos de Gentrificação
a acontecer no Porto em Abril de 2017 (Contrabando- espaço
associativo, Habita65, Left Hand Rotation, Projecto Inducar, The
Worst Tours).
Daniela Alves Ribeiro
(Habita - Porto)
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