domingo, 13 de janeiro de 2019

A Nova Geração de Políticas de Habitação não é nova e não defende a habitação

 Em vésperas de eleições autárquicas, o primeiro ministro elegeu a política pública de habitação como prioridade e cria uma secretaria de estado para esse fim. António Costa disse “não pôr em causa a liberalização do mercado”1 e identifica a classe média como alvo prioritário a aceder à habitação “a custos que sejam acessíveis”. Posteriormente, foi anunciada a Nova Geração de Políticas de Habitação, que estabelece como meta 2024, ano sem famílias em condições indignas de habitação2. É referido também que se pretende aumentar de 2 para 5 % a habitação com apoio público. Apesar de as políticas de habitação serem anunciadas como prioritárias, não se vislumbram medidas de emergência que respondam à crise e à emergência social de famílias em condições não só indignas, mas de privação total de habitação, ou que enfrentam o despejo sem alternativas.

Pretende-se neste texto identificar as principais políticas previstas na chamada Nova Geração de Políticas de Habitação, analisando a sua base política e ideológica, procurando-se vislumbrar que capacidade tem para cumprir, efetivamente, o que está prometido.


Em primeiro lugar, o programa 1º Direito, que se destina ao desenvolvimento ou melhoramento de habitação para famílias que vivem em condições precárias. Este programa remete principalmente para as autarquias (mas não só) a responsabilidade da sua execução, de adesão voluntária, entregando uma parte muito considerável do esforço financeiro a estas (entre 40 % e 65 %). O Orçamento de Estado recentemente aprovado demonstrou quão pouco o Estado entrega a este programa: 40 milhões de euros. Consideravelmente subfinanciado, o 1º Direito assenta nos mercados financeiros para uma parte muito substancial do seu financiamento através das autarquias, carregando-as com a resolução dos problemas de falta de habitação adequada, sem a transferência dos recursos financeiros necessários ou as competências jurídicas adequadas para responder aos problemas que se acumulam.

O programa Porta de Entrada, que pretende desenvolver respostas de emergência de habitação em casos de catástrofe natural, é um programa necessário. No entanto, a sua concepção de emergência ou de catástrofe parece ser limitada, uma vez que já demonstrou que não se dirige aos núcleos de habitação precária, pois que as tempestades e incêndios recentes (veja-se o caso do Bairro da Torre onde mais de 30 pessoas perderam as suas casas para um incêndio, ou as tempestades que levaram várias casas no Bairro das Pedreiras, em Beja) não foram motivo suficiente para acionar o Porta de Entrada, nem as câmaras municipais nem o IHRU acharam necessário, deixando as pessoas ao relento. 

Um dos programas centrais propostos na Nova Geração de Políticas foi o chamado arrendamento acessível para a classe média, que consiste na isenção fiscal do IRC e IRS e, eventualmente, descontos no IMI para os proprietários que praticam rendas 20 % abaixo do valor médio do mercado na sua zona geográfica e contratos de “longa duração” com a espetacular longevidade de 3 anos. Não se percebe como é que se considera que arrendamento acessível é aquele que está 20 % abaixo do preço do mercado, sobretudo nas zonas de maior pressão demográfica e imobiliária, que é também onde a habitação faz mais falta. As famílias que se vão qualificar terão de ficar com uma taxa de esforço entre os 10 e os 35%. Olhando para os preços que se praticam atualmente, os rendimentos das famílias deverão ser deveras elevados. Esta medida é aquela que dá origem à afirmação do Primeiro Ministro que reclama o aumento do parque habitacional – atenção ao pormenor da afirmação – “de 2 % de habitação pública para 5 % de habitação com apoio publico”. Ora, habitação com apoio público não é habitação pública, é habitação privada, com preços exagerados mas chamados de acessíveis e cujo apoio publico é a isenção de impostos aos senhorios. Esta afirmação, e os números apresentados, levam-nos a crer que se desiste do aumento significativo de habitação pública, esta será residual, e substitui-se, como Cameron fez em Inglaterra, a habitação pública e social pelo conceito de “acessível” (mas não muito) e com apoio público. Veremos então onde e de que forma os proprietários aderem. Tudo leva a crer que nas zonas de maior pressão imobiliária e maior necessidade de habitação, não haverá grande adesão pelos proprietários que atuam de forma a rentabilizar o seu património de outras maneiras.

Por outro lado, temos o programa IFFRU, instrumento financeiro de financiamento da reabilitação urbana, proveniente do programa operacional Portugal2020 que tem um pacote financeiro muito considerável para empréstimos com boas condições para a reabilitação urbana, com a banca privada como intermediária. Estes apoios muito consideráveis à regeneração urbana não têm quaisquer contrapartidas do ponto de vista da acessibilidade da habitação, são na verdade uma forma de apoio à gentrificação, à valorização financeira do património privado, uma alavanca para a especulação e expulsão, cujo mecanismo de financiamento se integra nos mercados financeiros nacionais e internacionais.

A Nova Geração fala também na necessidade de desenvolver um quadro favorável (o que poderá significar benefícios fiscais, liberalização, etc.) para entrada dos REITs (Real Estate Investment Trusts) em Portugal. Os REITs são fundos financeiros internacionais cotados em bolsa e que permitem que investidores individuais comprem ações em carteiras de imóveis, pelo que têm como missão potenciar as rendas do imobiliário e da habitação. Tendo que apresentar resultados aos acionistas, estes terão de ser eficientes e rápidos na reprodução de capital. Muitas queixas tem havido destes fundos na Alemanha, em Espanha ou nos EUA. Não nos parece que sejam os REITs que irão melhorar as condições e a acessibilidade na habitação. Pelo contrário, agravarão o processo de financeirização da habitação em que motivos, actores e mercados financeiros dominam a provisão deste bem essencial à vida humana. 

O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado é mais um fundo de investimento financeiro, de gestão pública (por enquanto). A sua missão é a reabilitação de imóveis vazios do Estado e numa fase posterior, privados, e a colocação de parte destes em arrendamento acessível e o restante em mercado livre. Sendo um fundo de rendimento terá, igualmente, de ser rentável.

À Nova Geração3 juntam-se as múltiplas isenções e benefícios fiscais à reabilitação urbana4 ou aos fundos de investimento imobiliário5, que significam apoio público, recursos públicos, que promovem a expulsão e a gentrificação das nossas cidades, porque não estão sujeitos a quaisquer condições sobre essa matéria.

É muito relevante que o primeiro ministro tenha desde logo avisado que não se pretendia tocar no mercado liberalizado. A Nova Geração assenta principalmente em soluções privadas, em lógicas de financiamento privado, não pretende nem regular, nem criar quaisquer limites ao mercado. Está fora de questão para o governo regular o arrendamento ou criar limites à especulação. É lamentável, uma vez que já se percebeu que os mercados com rédea solta são os principais responsáveis pela inacessibilidade da habitação, compostos cada vez mais por empresas e fundos, grandes proprietários que hoje estão à frente no processo de acumulação de capital.

É também muito relevante que o alvo sejam as classes médias, num país onde quase 25% dos trabalhadores/as ganham o salário mínimo. Se as políticas de habitação vão passar principalmente pelo chamado arrendamento acessível, este “acessível” é a forma de continuar a defender lucros privados e o desinvestimento público no público, procurando apaziguar a classe média eleitora com uma promessa da acessibilidade que dificilmente será concretizada.

A Nova Geração não é nova porque é mais do mesmo, mais do mesmo projeto neoliberal, que começou na política de apoio público à compra de casa própria com subsídios à banca através dos bonificados, que desencadeou especulação imobiliária durante décadas e o acesso desigual à habitação; depois veio a liberalização do mercado de arrendamento, aumentando as rendas sem limites e facilitando os despejos e agora, vários programas de apoio à regeneração urbana, leia-se, gentrificação, com isenções fiscais a rendas elevadas chamadas de acessíveis e contratos precários com a duração de 3 anos chamados , na novilíngua, de longa duração (e entretanto foi negociado para 2 anos entre PS e PSD, no parlamento). Tudo isto depende ainda da adesão voluntária pelos proprietários. O modelo de financiamento da nova geração assenta principalmente na banca e nos fundos financeiros agravando o processo de financeirização. Abdica-se da regulação e da fiscalização e prescinde-se da habitação pública. A Nova Geração não é nova, é a velha receita neoliberal em desenvolvimento e, por esse motivo, não defende a habitação. É que, para responder à crise na habitação provocada pelo neoliberalismo, não se pode responder com mais neoliberalismo. 


Rita Silva

1https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/antonio-costa-elege-politicas-para-habitacao-acessivel-como-nova-prioridade

2https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/noticia?i=governo-aprova-pacote-legislativo-de-politicas-de-habitacao

3Existem ainda outros programas cujo impacto é menor: os fundos para a Casa Eficiente têm sido também uma forma de valorização de património privado, com algumas exceções de aplicação pelas autarquias no parque social. O Reabilitar como Regra adaptará o quadro legal da reabilitação e o programa Da Habitação ao Habitat que “Promove a coesão e a integração socioterritorial dos bairros de arrendamento público com visa à melhoria global das condições de vida dos seus moradores” e que não tem praticamente orçamento nenhum. O Programa Chave na Mão que promove a troca de casa para a mobilidade laboral e, finalmente, o Porta 65 jovem, que já existia, e que subsidia arrendamento privado para maior acessibilidade de jovens de classe média. Este programa é, no entanto, bastante limitado no número de famílias abrangidas.

4https://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/reabilitacao/apoios/incentivosfiscais.html

5https://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/legislacao/beneficiosfiscais.html#04

1 comentário:

  1. A Assembleia da República tem a competência exclusiva para eliminar a legislação nacional que possibilita a especulação imobiliária em Portugal (ex: Vistos Gold, Lei dos Despejos, isenção de IRS para os reformados dos países da União Europeia e dos Vistos Gold desde que residam em Portugal, redução de 80% no IRS para os trabalhadores milionários estrangeiros que só pagam 20% no respetivo escalão praticamente isenção, etc).

    Além disso, a Assembleia da República também tem a competência exclusiva para modificar a legislação fiscal, principalmente o IMI (ex: efetivar o pagamento de IMI a triplicar para imóveis devolutos, aplicação de IMI a triplicar para alojamento local e para residências secundárias, fim dos benefícios fiscais para fundos imobiliários de investimento e offshores, etc), para que desincentive a propriedade de vários imóveis e os proprietários as insiram no mercado de compra/venda e arrendamento.

    Nestas áreas, a União Europeia não impõe nenhuma obrigação ou dever para os Estados-Membros.

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