quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Fighting Displacement: A Transatlantic Workshop

Fighting Displacement: A Transatlantic Workshop

De 20 a 22 de Outubro, o HABITA participou num encontro, co-organizado pela Rosa Luxemburg Stiftung (escritório de Nova Iorque) e pela Right to the City Alliance (RTTC), intitulado Fighting Displacement: A Transatlantic Workshop. O primeiro dia foi dedicado a Brooklyn, um dos contextos que, ao longo dos últimos anos, tem sofrido alterações mais profundas na sua paisagem urbana. Primeiro, através do visionamento de um documentário – My Brooklyn – realizado por Kelly Anderson, em 2012, que retrata de um modo bastante expressivo as dinâmicas de gentrificação em curso desde meados da década de 1980; depois, por intermédio de uma visita de estudo, dinamizada por um membro da Families United for Racial and Economic Equality (FUREE), a Crown Heights, um dos bairros em que são mais evidentes as transformações urbanas em curso, a injustiça espacial e os problemas sociais gerados. É nele que podemos encontrar Fulton Street, até há poucos anos a terceira principal artéria comercial nova-iorquina. O grande aumento das rendas, decorrente do tradicional frenesim especulativo sempre que é anunciado mais um grande projeto de regeneração urbana (neste caso, um grande espaço comercial associado a habitação de luxo), levou ao encerramento de uma parte muito significativa dos pequenos estabelecimentos de base étnica. Os mesmos que, ao longo do tempo, foram decisivos para o desenvolvimento da grande dinâmica social e económica que caracterizava Fulton Street mas também para a construção da sua identidade cultural, fortemente ligada aos primórdios do hip-hop. Dado o adiantado estado do processo, a FUREE, juntamente com outras organizações, tem reivindicado a construção de alguns fogos a custos controlados. Trata-se, pois, de mitigar os efeitos destrutivos do urbanismo neoliberal. No entanto, a poucos minutos de distância, no nº277 de Duffield Street, o cenário é mais animador. Resistindo à intensa pressão exercida pela Empire State Development (ESD), agência pública para o desenvolvimento económico, encontra-se a casa onde viveram Thomas e Harriet Truesdell, dois eminentes ativistas do movimento abolicionista. Com efeito, escavações levadas a cabo no local revelaram a existência de túneis pertencentes àquilo que se designa no contexto norte-americano como Underground Railroad, uma extensa rede de túneis e casas clandestinas que abrigavam os escravos foragidos e lhes permitia escapar rumo à liberdade. Apostados em preservar a memória dos seus antepassados, os atuais proprietários, têm defendido a criação da Underground Railroad House, espaço museológico projetado em torno da rede que acabámos de descrever. Mostrando-se totalmente indiferente, a ESD pretende demolir essa mesma casa, colocando em seu lugar um parque de estacionamento subterrâneo, parte integrante de um plano maior que inclui também dois hotéis de luxo e um parque urbano. Para isso, alegou o interesse público (eminent domain). Resulta claro que do lado de lá do Atlântico, como cá, o interesse público se encontra fortemente ligado ao (potencial) valor de mercado do espaço urbano. Felizmente, uma ação contra o município levada a cabo pelos proprietários com o apoio da FUREE, impediu o avanço do plano. Até quando, não sabemos. Mas é um sinal de que, por vezes, podemos encontrar no sistema jurídico algum espaço de manobra para a defesa do direito à habitação e à cidade. A leitura que fazemos dos processos de gentrificação observados mostra claramente o papel da habitação, enquanto um dos pilares centrais da justiça económica e da igualdade. Faz também emergir uma questão política importante, nomeadamente, o individualismo moral, ou seja, uma certa tendência para as vítimas do processo o encararem como um problema pessoal, cuja resolução deve ser também encontrada na esfera individual. Deslocar o problema da gentrificação para um plano coletivo é o desafio que enfrentam muitos movimentos sociais e organizações que trabalham neste campo.
No segundo dia, debruçámo-nos sobre a questão do displacement (deslocalização) que, no domínio da habitação, remete para o desalojamento de famílias sem que estas tenham manifestado qualquer desejo ou tomado qualquer iniciativa nesse sentido. É, pois, um processo que lhes é imposto por forças que lhes são estranhas, nas mais das vezes ligadas aos grandes agentes privados responsáveis pela produção de espaço urbano (ex: investidores, fundos imobiliários), embora possa também ser desencadeado pela ação direta dos poderes públicos. No caso norte-americano, o facto da “indústria imobiliária” ser uma das maiores fontes de financiamento político-partidário, torna-a bastante poderosa e um poderoso agente transformador do espaço urbano. Salvaguardando as devidas diferenças de amplitude e intensidade, também em Portugal, a promiscuidade entre essa “indústria” e os poderes públicos (independentemente da escala considerada) é um dos traços mais característicos do “modelo” de desenvolvimento urbano nacional. Como é bem sabido, o urbanismo, os negócios e a corrupção, vão muitas vezes de braço dado. Para além disso, a deslocalização enquanto problema sócio-espacial, parece estar ligada a uma certa racionalidade económico-cultural que encontra na propriedade um dos seus alicerces. Por outras palavras, se a regra fosse o arrendamento e não a compra de casa própria (colonizando e limitando o futuro das pessoas através do seu endividamento), a experiência da deslocalização não só seria mais facilmente combatida como, caso se concretizasse, seriam menos traumáticas as suas consequências. Por fim, importa também colocar em evidência a relação entre a deslocalização e aquilo a que o geógrafo britânico David Harvey tem vindo a chamar “acumulação por desapossamento”, um processo definidor do capitalismo neoliberal que, por exemplo, se manifesta quando o Estado promove o desalojamento dos grupos sociais mais vulneráveis, quer através de forças repressivas como a polícia, quer através de alterações legislativas ou planos de regeneração urbana. Seguidamente, discutiu-se o potencial inerente ao fortalecimento das relações entre investigação e ativismo. Por exemplo, algumas das vantagens da utilização de documentação original enquanto instrumento de luta social, designadamente: o seu potencial ao nível da educação e da auto-consciencialização popular, a sua importância enquanto ferramenta de legitimação junto do status quo e a mediatização e difusão de uma perspetiva crítica acerca das problemáticas da habitação e da cidade, foram salientados por membros da Causa Justa :: Just Cause e da RTTC. Chamou-se também atenção para a utilização de mapas e outros formatos cartográficos, enquanto instrumentos privilegiados para difundir informação de natureza sócio-espacial, como é aquela que incide sobre as questões urbanas. Por fim, o aprofundamento da articulação entre a comunidade académica e o mundo do ativismo foi também considerado um aspeto importante. Efetivamente, uma das estratégias levadas a cabo por algumas organizações norte-americanas que participaram no workshop tem sido a de encontrar interlocutores privilegiados na academia, levando-os a incluir alguma da investigação-ativista nos seus curricula e a procurar envolver alguns dos seus estudantes na luta pelo direito à habitação e à cidade. Depois, as relações entre a crise económica, as políticas de austeridade e a deslocalização foram exploradas a partir de diferentes contextos geográficos, nomeadamente, Atenas, Barcelona e Lisboa. Relativamente a esta última, colocaram-se em evidência a questão dos despejos e demolições que afetam muitos bairros suburbanos e o potencial gentrificador da nova lei das rendas, bem como algumas dos desafios encontrados pelo HABITA no que diz respeito à sua capacidade de mobilização coletiva. A companheira do Encounter Athens, por seu turno, destacou o facto da vida quotidiana desta metrópole grega ser profundamente marcada pela violenta e sistemática ação dos grupos de extrema-direita contra estrangeiros e minorias étnicas mas também contra alguns movimentos sociais que têm procurado colocar a questão do direito à habitação na agenda política. Por fim, a Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH) de Barcelona, salientou o facto da sua ação política valorizar constantemente as pequenas vitórias (caso-a-caso). Ademais, defende-se que a banca não pode despejar ninguém, dado que esta foi salva por dinheiro público. As casas são, por isso, também elas, públicas. E ninguém pode ser despejado nestas condições. É um argumento político interessante que poderia, eventualmente, ser também testado no contexto português. Por outro lado, salienta-se também que este movimento espanhol, que apresenta uma notável capacidade mobilizadora, não tem receio de utilizar a ocupação temporária de habitações em risco de despejo enquanto estratégia de luta. Evidentemente, esta estratégia é sempre levada a cabo em articulação com os agregados familiares que se encontram nestas situações, facto de tem contribuido decisivamente para a construção de uma opinião pública favorável, ou seja, de uma certa legitimação social das ocupações.
No último dia, abordaram-se algumas experiências concretas de gentrificação em várias cidades europeias (Hamburgo, Madrid e Berlim) e norte-americanas (Los Angeles). Na metrópole americana, o testemunho da Strategic Actions for Just Economy (SAJE) centrou-se no papel desempenhado pelas universidades, mais concretamente pelos processos de expansão de campus universitários, enquanto promotoras de processos de gentrificação. Aparentemente, em Los Angeles, a lógica de empresarialização das universidades é de tal magnitude que produz já efeitos ao nível da transformação do espaço urbano. Quanto ao contexto europeu, a Recht auf Stadt, apresentou a luta que tem sido travada no conhecido bairro de St. Pauli e a Kotti & Co, tratou o caso de Kreuzberg. Em ambos os casos, trata-se de bairros originalmente marginalizados e considerados pouco atrativos, constituídos por classes populares e comunidades migrantes que, ao chegar à Alemanha, encontravam aí custos de habitação que podiam comportar. Progressivamente, porém, numa tendência que podemos também hoje observar em Lisboa, por exemplo, estes bairros foram sendo gentrificados, sendo “expulsos” muitos dos seus habitantes originais para espaços cada vez mais periféricos e, ao mesmo tempo, bloqueando-se a entrada à maior parte das pessoas. Por último, a PAH de Madrid apresentou um conjunto bastante diversificado de exemplos de gentrificação que, no caso desta cidade, se manifestam não apenas nos bairros operários tradicionais. Por fim, em jeito de conclusão, os diferentes participantes consideraram ter sido uma experiência bastante enriquecedora que deve ter continuidade no futuro. A partilha de experiências, saberes e processos de luta (estratégias e táticas), foi unanimenente vista como uma mais-valia para o trabalho de cada um dos participantes. Foi também decidido que iremos trabalhar com vista a uma maior articulação transatlântica neste domínio e que isso requer a identificação de adversários comuns. No entanto, é preciso levar sempre em linha de conta um dos aspetos mais contrastantes entre os contextos europeu e norte-americano, nomeadamente, a enorme disparidade de recursos disponíveis para que as organizações possam desenvolver o seu trabalho. Enquanto na Europa os recursos são escassos, nos EUA, passa-se o oposto. Este aspeto, evidentemente, não pode ser ignorado quando procuramos robustecer as relações entre as duas margens do Atlântico. Considerou-se também que é fundamental combater a naturalização e valorização dos processos de gentrificação e deslocalização, ou seja, a tendência para, por um lado, considerá-los inevitáveis e intrínsecos ao desenvolvimento urbano das cidades contemporâneas, por outro, vê-los como parte de um processo positivo que, em última instância, beneficiará sempre as sociedades urbanas como um todo. Pelo contrário, acreditamos que ambos são resultado de um conjunto bastante complexo e dinâmico de processos económicos, políticos e culturais que devemos procurar compreender em profundidade. Para melhor os combater.

 André Carmo
28/10/14

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