terça-feira, 6 de outubro de 2015

Como transformar a habitação num privilégio? O caso dos bairros cooperativos de Azeitão em risco de despejo como exemplo


Em dois bairros de habitação social situados em Azeitão, construídos por uma cooperativa de habitação na segunda metade dos anos 80, há 41 famílias em risco de ficar desalojadas, apesar de terem pago integralmente as suas casas. Perante um país que se desmorona a ritmo acelerado, o problema de 41 famílias poderá parecer relativamente secundário para muita gente. Mas, como acontece em quase todas as lutas, o que os moradores de Azeitão enfrentam é parte de um problema maior e permite-nos olhar muito para lá do contexto local. Nesta situação particular vemos tanto os reflexos presentes de um país dominado pela austeridade e pela crise, como as consequências do processo de hegemonização do neoliberalismo, verificado nos últimos anos, que subordinou quase todas as dimensões das nossas vidas (entre elas a habitação) à finança e ao mercado. É por aqui que o que acontece em Azeitão, apesar de todas as suas especificidades jurídicas, sociais e políticas, se confunde com o brutal despejo de uma mãe e duas filhas da sua casa, em Silvalde, ou o despejo de qualquer outra família por uma dívida ao fisco, ou se confunde com as populações dos bairros de Santa Filomena, Estrela de África ou 6 de Maio, na Amadora.


Que o jogo está viciado pelas regras do mercado e da finança torna-se logo evidente pela necessidade que eu próprio tive de referir – para frisar o usufruto do direito a ter uma casa – que as pessoas pagaram integralmente as casas que habitam há quase 30 anos, como se o facto de as terem pago total ou parcialmente tornasse mais ou menos legítima a expulsão de uma família da única casa que tem. Nessa armadilha começa a confusão entre direito e privilégio. No quadro actual, a habitação é uma mercadoria equiparável a tantas outras mercadorias que têm lugar nas nossas vidas como fruto de uma simples escolha, algo que podemos escolher entre ter e não ter: uma espécie de luxo ou de produto secundário face a coisas básicas como a alimentação.

São muitos os mecanismos e os conceitos através das quais esta realidade se materializa e legitima. Apesar do reconhecimento do direito à habitação pela constituição portuguesa – e não apenas do direito a uma habitação, mas sim “a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (artigo 65.º) –, é muitas vezes através dos tribunais e do aparato jurídico que acontece a negação desse mesmo direito. As leis parecem transformar-se em leis da física, aparentemente imutáveis e incontornáveis, e a justiça, mais do que um fim, revela-se refém dos interesses financeiros. Em Azeitão, pela peculiaridade da situação, toda a gente assume estar em causa uma grande injustiça. No entanto, são muitos os que não deixam de afirmar, imediatamente a seguir, a inevitabilidade do que está a acontecer. A lei é usada, por um lado, como um campo neutro para desresponsabilizar aqueles que insistem que despejar alguém da sua única habitação é uma fatalidade contra a qual nada se pode fazer, e, por outro lado, é usada para responsabilizar os moradores, neste caso, por um problema com o qual nada têm que ver. Só assim se explica que estas famílias tenham acordado uma manhã com um anúncio no jornal a leiloar as suas próprias casas, como se estivessem vazias. A lei permite transformar aquilo que é uma questão política num problema meramente técnico, na tirania da simples gestão do presente, como se assim se pudesse legitimar qualquer barbaridade.

A dívida é outra palavra-chave do nosso tempo. Paira sobre nós, no dia-a-dia, e manda tanto nos orçamentos de Estado como nos orçamentos familiares. Foi em grande medida através da habitação que ela se instalou nas vidas de quase toda a gente. Mas a dívida funciona como um imperativo moral: “as dívidas têm de ser pagas” é um mandamento inquestionável que pouco ou nada deve à economia. E é por isso que conhecemos a dívida mais como forma de punição do que outra coisa: sabemos o que é ser-nos cobrada uma dívida que nunca contraímos e que toda a gente sabe que nunca contraímos. Mesmo que nunca tenhamos estado em dívida para com ninguém, conhecemos e sentimos a culpa de dever alguma coisa, seja um país ou um simples tecto. Tal como as 41 famílias de Azeitão. A dívida serve para nos convencer de que “vivemos acima das nossas possibilidades” quando apenas usufruímos de um direito fundamental. E, no caso de Azeitão, com a cruel contradição de os moradores terem pago as casas.

O “vivemos acima das nossas possibilidades” é, também, a forma de nos chamar à “realidade” – a nós, que estamos na base da pirâmide social – recordando-nos qual o lugar a que pertencemos. É uma forma de nos dizer: “ter casa própria foi uma ilusão e há que voltar ao vosso lugar, desta vez sem ilusões”. Como se ter casa (ou lavar os dentes com a torneira aberta ou comer bifes todos os dias) nos tivesse elevado a uma condição que não é a nossa ou nos tivesse colocado fora da “ordem natural das coisas”. Como se ter casa não fosse para qualquer um. Atirar sistematicamente o fardo da “vida acima das possibilidades” para aqueles que menos têm é uma das mais claras expressões de que o que está em curso é um programa de luta de classes.

Finalmente, Azeitão recorda-nos outra coisa, esta talvez menos presente noutras situações em que o direito à habitação está em causa. As casas destes dois bairros de Azeitão foram construídas por uma cooperativa de habitação, um modelo económico reconhecido pela constituição portuguesa com o propósito de servir de alternativa ao mercado e à forma de organização económica capitalista. Sucessivas leis, promulgadas desde o final dos anos 80, empurraram as cooperativas para uma lógica que lhe era antagónica e levaram-na a jogar o jogo com regras que não eram as suas. O regime de propriedade cooperativo foi alterado e fortemente desvirtuado (no cooperativismo habitacional, a propriedade não é nem privada nem pública, é colectiva, em parte para que as situações de incumprimento individual, no decorrer do pagamento da casa, não impliquem um despejo ou neguem o direito a ter habitação) e as cooperativas, desprovidas de financiamento em condições favoráveis, quando elas próprias substituiam ou complementavam um Estado ineficaz no seu dever de providenciar habitação digna e acessível, viram-se obrigadas a contrair empréstimos bancários, com juros elevados, para cumprir as obrigações que tinham assumido. É, em suma, a história da demissão do Estado em assegurar o direito à habitação e a entrega quase exclusiva da provisão de oferta habitacional ao crédito bancário e aos especuladores. A maior parte das cooperativas não é isenta de culpas, pois aceitou essas condições com agrado, vendo aí uma janela para enriquecer. Mas aquilo de que os moradores de Azeitão são lembrados frequentemente, em particular nos seus contactos institucionais, é de que em causa está, também, um ataque a todos os projectos colectivos e a tentativa de destruição de todas as experiências e de todas as ideias que tentam ir para lá da lógica do mercado (e, em certa medida, também procuraram autonomizar-se do Estado). Os moradores de Azeitão são punidos porque procuraram ver assegurado o direito fundamental a ter uma habitação através de uma cooperativa e não através de um empréstimo ao banco. É-lhes dito frequentemente: “aqui está a prova de que os projectos colectivos não resultam”. O que encontramos em Azeitão é, portanto, mais um passo na construção desta enorme máquina de desesperança, que nos diz que não há alternativa, que nos pede para render, que nos pede para desistir e entregar as nossas vidas.

Há que ter todas estas coisas presentes quando lutamos por construir uma nova narrativa, em que a habitação seja um direito e não um privilégio e em que ser despejado não seja uma inevitabilidade. Há que responder que, mesmo que alguma vez tivéssemos vivido acima das nossas possibilidades, sempre vivemos abaixo da nossa dignidade e que, por isso, queremos mais.

Diogo Duarte

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