O aumento do preço da habitação em
Lisboa é, sem exagero, alarmante, e finalmente muita gente começa a
falar sobre o assunto. Notícias como a subida abrupta no ranking das cidades mais caras do mundo devido ao preço do arrendamento, ou que em
três anos o preço da habitação em Lisboa aumentou na ordem dos 22%, e a escassez de casas para arrendar são um problema sério. Tem-se
falado do turismo e do alojamento local como as razões para o que
está a acontecer. Mas reduzir o debate apenas a essas questões não
nos leva muito longe. É preciso pensar, em primeiro lugar, como
viemos aqui parar, onde estão as responsabilidades e, a partir daí,
que respostas poderemos desenvolver. Este texto pretende ser um contributo.
A primeira causa para o que está a
acontecer foi a liberalização do mercado de arrendamento, leia-se,
o aumento das rendas antigas e a abertura de vias verdes para o
despejo, através do anúncio de obras (sem necessidade de reintegrar
o inquilino), precarização dos contratos e a criação dos balcão
nacional do arrendamento (que só serve para despejos)
retirando-o da alçada dos tribunais numa clara violação das
garantias de protecção que os inquilinos têm de ter. Este processo
desequilibrou drasticamente a balança para o lado dos proprietários.
Esta foi uma medida querida da troika – alta representante do
capital financeiro – escrita no memorando, que já antevia a nova
área de negócio que aí vinha: reabilitação, arrendamento,
mercado de luxo, turismo. É que o arrendamento com direitos dominava
os centros das cidades e não podia continuar assim para os
novos projectos que se anteviam, que necessitavam de despejar sem
constrangimentos de maior.
É preciso que se desminta, desde já,
mais um mito urbano: que o abandono da cidade e a degradação
durante anos, se devia à anterior lei das rendas. Não, o abandono
dos centros das nossas cidades deveu-se a um modelo, apoiado e
subsidiado por uma política do Estado, compra de casa nova,
crédito à habitação e expansão das cidades, que fez com que todo
o investimento fosse direccionado para aí. Este modelo, como sabemos,
esgotou-se, e os mesmos interesses, viraram-se agora para a
reabilitação e para o mercado de luxo e das altas rentabilidades. É
por isso que a maior parte dos edifícios que estão (e estiveram) vazios e degradados no centro da cidade são e eram de
fundos de investimento imobiliário e promotores. Estavam apenas à
espera do momento.
Portugal tem vindo a desenvolver nos
últimos anos uma espécie de offshore
imobiliário, quer seja os Vistos Gold, quer seja o estatuto de
residência não habitual para estrangeiros, que lhes dá a
possibilidade de não pagar IRS, em troca de cerca de 180 dias de permanência
no país. O impacto destas medidas é elevado, uma vez que há
milhares, sobretudo reformados, a fixar residência em Portugal de
forma a deixar de pagar impostos. A compra de habitação e a sua
rentabilização sobretudo no arrendamento temporário estão a fazer
caminho. Os fundos de investimento imobiliário e outros, também
continuam sua longa tradição de não pagar impostos1.
A promoção do alojamento local,
através de um sistema fiscal bastante mais vantajoso do que o
arrendamento, em que só se pagam impostos sobre 15% dos rendimentos,
foi a cereja no topo do bolo. Mas o alojamento local não é todo o mesmo,
há os pequenos proprietários que organizam este negócio com uma
casa que têm, para compensar a perda de trabalho e de rendimentos
que a austeridade trouxe, mas
também os fundos de investimento imobiliário, que reabilitam e
vendem para o segmento de luxo e gerem modalidades de
arrendamento temporário de muitos apartamentos, e usufruem dos mesmos
benefícios fiscais. Desta forma, o AL está a subtrair milhares de
casas ao arrendamento.
A Autarquia abdica de todas as suas
funções de regulação, equiparou o alojamento local a habitação
e por isso o licenciamento é o mesmo. Manuel Salgado tratou de
liberalizar também os planos de ordenamento, é tudo uma questão de
mercado, segundo ele, a regulação só atrapalha. Entretanto, fez
dezenas de planos de pormenor à medida exacta de proprietários e
promotores, liberalizou o PDM, o Plano de Salvaguarda da Baixa, etc.
A CML anuncia, no entanto, uma reacção
– Lisboa Para Todos – um rótulo eficaz, quiça o mote para a
campanha eleitoral que se aproxima: este programa irá
colocar através de uma espécie de parceria pública privada, cujos
contornos não conhecemos na totalidade, entre 5 a 7.000 casas no
mercado para arrendamento (menos de metade do que as que estão hoje
no alojamento local). Estas casas com renda acessível (que ainda não
sabemos o que é) será sorteada para famílias com rendimentos
entre os 7500 e os 40.000 euros por ano. Podemos retirar daqui pelo
menos duas conclusões: a primeira é que a autarquia, apesar de
celebrar o que se passa na cidade, admite que o mercado de habitação
se tornou inacessível à esmagadora maioria da população, pois se
é necessário criar habitação acessível para famílias até aos
40.000 euros por ano, é admitir que cerca de 97% da população não
encontra habitação acessível. Por outro lado, ao deixar de lado,
aquelas que têm rendimentos anuais menores que 7500 euros, está a
excluir uma grande faixa de população, pois que, de acordo com o
ministério das finanças a percentagem que está abaixo disso é
muito elevada. Mas significa também um preconceito, que afinal Lisboa
não é para todos(e todas!). Este programa não será para muitas famílias
precárias, do salário mínimo, ou abaixo disso, dos part-times, ou
dos desempregados; significa que essas pessoas são para as listas de
espera (e sem resposta) dos bairros sociais, o local dos pobres, ou inevitavelmente expulsas da cidade. Como o mercado está como está, a escassa política social redirecciona-se para a chamada 'classe média' e acaba de vez com qualquer política para os sectores mais empobrecidos da população que há muito esperam e desesperam.
Pode haver outras soluções, diversas, de âmbito mais estrutural, que não têm de passar pela discriminação dos pobres e por PPPs se
o poder público assumir as suas funções.
Em primeiro lugar, alterar a lei do
arrendamento urbano. Repor a garantia de protecção do inquilino
perante o despejo e parar os despejos por obras.
É preciso acabar com o offshore
imobiliário para estrangeiros, por um lado, e por outro, distinguir
grandes de pequenos proprietários. São os grandes proprietários
que têm a capacidade de mandar na cidade, movimentam interesses,
mexem nos preços, não pagam impostos. Esta situação tem de ser
invertida. Se os grandes proprietários começarem a ter tributação
justa, na proporção dos ganhos que fazem, teremos mais recursos
para uma política pública de habitação e maior capacidade de
regulação.
Relativamente ao alojamento local,
distinguindo grandes e pequenos pequenos proprietários, é
necessário aproximar os sistemas fiscais do arrendamento permanente e do AL de
forma a não se preferir o segundo por esse
motivo. Assim como é fundamental a distinção entre o que é
habitação e o que é AL, a sua monitorização e regulação,
através de licenças, de forma a não desequilibrar a oferta de
habitação na cidade. No momento actual uma moratória a mais AL e
Hotéis era o mínimo para de alguma forma travar o processo e
começar a criar outras medidas.
Criar mecanismos de controlo do
arrendamento, como tectos máximos para o arrendamento e limites à subida quando há
mudança do contrato são outras possibilidades. Muitas cidades assim
o fizeram. Por exemplo, Nova Iorque, no seu tempo cosmopolita,
de diversidade social e cultural que, exactamente pelo fim do controlo do arrendamento e da gentrificação,
perdeu muito dessa riqueza e hoje deixou de ser a cidade interessante
que foi.
Seria muito útil que Câmara e Estado
central parassem o processo de alienação de habitação que
desenvolveram nos últimos anos. A política de arrendamento público
deve ser promovida, inclusivamente com a possibilidade de requisição
de habitação vazia para integrar bolsas de arrendamento. Assim como
a criação de mecanismos de garantia de percentagens de habitação
acessível para arrendamento (para todos e todas a sério) nos planos
de ordenamento de território, novas urbanizações e planos de
regeneração urbana, de acordo com as necessidades reais (da mesma
forma como se define os espaços verdes e os equipamentos, também a
habitação social deveria estar estabelecida, sem ser confinada aos guetos.
Estas são apenas algumas propostas de
reformas e regulação, que permitiriam um reequilíbrio perante a
ditadura dos mercados, que nos retiraram o direito à cidade, não só de a habitar, mas também de nela participar verdadeiramente. É o mercado que
hoje tem a passadeira vermelha estendida. Ter a passadeira estendida
aos direitos, são outros 500.
Rita Silva
1Apesar
de finalmente se ter acabado com a isenção de IMI e IMT dos FII.
Estes encontraram o típico alçapão na lei, provavelmente feito à
medida, para continuar a não pagar. Ver Artigo 9º, 1 e) do código
IMI
Boa tarde,
ResponderEliminarRelativamente ao alçapão da lei que refere aconselho uma análise mais cuidada e não demagógica...a alínea e) do n.º 1 do artigo 9º do Código do IMI sempre existiu e não se aplica a FII mas a empresas durante a fase em que o imóvel se encontra em construção (sem qualquer rendimento...aconselho igualmente a ler o novo n.º 6 do artigo 9º que estabelece uma clausula anti abuso para estas situações...seriedade e profundidade precisa-se..no resto parabéns pelas várias ideias expostas, apesar de parciais.