É já no próximo mês de Setembro que, em Santa Maria da
Feira, se irá realizar mais um TEDX, subordinado à temática da
criatividade urbana, chavão fundamental para quem quer estar na vanguarda do planeamento
e da gestão urbana. No entanto, a tese da cidade criativa, cujos contornos
foram originalmente delineados por Richard Florida, tem já alguns anos e tem
sido justamente criticada na medida em que, entre outros aspectos, reduz a
criatividade a mero instrumento de crescimento económico e competitividade.
Para este autor, e outros que, com diferentes matizes, seguem a mesma
orientação, a criatividade é hoje o principal gerador de vantagens competitivas
e uma das mais valorizadas mercadorias. Na feroz e implacável atmosfera
competitiva do capitalismo criativo do século XXI, acrescenta ainda Florida, a
criatividade é absolutamente central para a produção de cidades de sucesso. Por
conseguinte, estas precisam de se moldar à imagem da classe criativa – vagamente
definida como o conjunto de ocupações profissionais que vai dos artistas e
programadores (núcleo super-criativo) aos peritos nas áreas da administração,
gestão e serviços jurídicos (profissionais criativos). Supostamente, é esta
classe que atrai as empresas de alta tecnologia e elevado potencial de
crescimento. Por outro lado, a criatividade e os membros da classe criativa são
atraídos para contextos que apresentem aquilo que Florida designa como 3Ts do
desenvolvimento económico: tecnologia, talento e tolerância. Com base num
conjunto relativamente vasto de índices estatísticos (ex: gay index, talent
index, melting pot index, bohemian index) sustenta-se que para um
determinado lugar atrair pessoas criativas, gerar inovações e estimular o
desenvolvimento económico, deve possuir simultaneamente esses três atributos.
Assim, as cidades mais bem sucedidas são aquelas que conseguem criar uma
atmosfera liberal e boémia – capitalismo socialmente tolerante – aberta a todas
as manifestações de criatividade e diversidade e capaz de atrair os membros
mais empreendedores e dinâmicos da classe criativa.
As
críticas a esta abordagem são muitas e felizmente não se fizeram esperar. Por
exemplo, considera-se que a retórica da cidade criativa é marcada por uma forte
tendência para reduzir e simplificar excessivamente os processos de
desenvolvimento regional e urbano. O argumento
X→Y (onde X é a classe criativa e Y o desenvolvimento económico local)
negligencia as complexas interrelações subjacentes à formação de um contexto
urbano criativo. Por outras palavras, a criatividade urbana não pode
simplesmente ser importada para as cidades por intermédio de hackers, skaters,
gays e boémios de todos os tipos pois é algo que se desenvolve através de uma
complexa (e altamente indeterminada e contingente) teia de relações de
produção, trabalho e vida social. Enquanto conceito, a classe criativa tem sido
também acusada de se basear num entendimento inadequado da criatividade humana;
ao mesmo tempo reducionista – classe não passa de uma categoria taxonómica com
fronteiras obscuras – e determinista – causalidade surge associada a uma
classificação rígida baseada no rendimento e na ocupação profissional.
Por
outro lado, abordagens (instrumentais) centradas na cidade criativa parecem priorizar
modos de pensamento oportunista e não estratégico – agenciamentos neoliberais
empreendedores – marginalizando e/ou ignorando problemas económicas, políticas
ou ambientais de natureza mais estrutural. Glorifica-se um certo homo
creativus – sujeito atomizado, intenso e superficial, cosmopolita e
elitista, vagamente hedonista e frívolo, culturalmente radical e economicamente
conservador – como principal agente da mudança urbana. A política urbana da
classe criativa é unicamente desenhada para transformar as cidades em máquinas
de fazer dinheiro e não para satisfazer as necessidades dos seus habitantes. Nas
mais das vezes, aliás, os problemas estruturais (ex: habitação e espaços
públicos, transportes e mobilidade, democracia e governação) permanecem intactos
enquanto um novo urbanismo (revanchista) é fabricado à imagem da cidade
criativa e das necessidades do homo creativus. A cidade, essa, continua
a ser um espaço social profundamente desigual e segregado. Celebra-se assim um
espaço desigual no qual um grupo de profissionais quasi-místicos – a classe
criativa – é sustentado por um exército invisível de trabalhadores precários e
mal remunerados aos quais nunca se pergunta: em que cidade gostariam de viver?
Por conseguinte, as preocupações com o bem-estar e a qualidade de vida urbana
encontram-se subordinadas a imperativos de desenvolvimento económico e a uma
incessante procura de vantagens competitivas cujas consequências nefastas são
sempre ignoradas ou minimizadas pelos seus protagonistas. Na verdade, quem não
pertence à classe criativa – os membros do tal exército invisível – vê os seus
sonhos e aspirações serem sistematicamente menosprezados, ridicularizados e até
ostensivamente vilipendiados por gestores, planeadores e decisores urbanos. A
sua única salvação passa, necessariamente, por se tornarem mais criativos (e
empreendedores).
Evidentemente, manifestações
subversivas de criatividade, formas de intervenção nas cidades que lidem com
contradições e conflitos, que se posicionem nas fronteiras da legitimidade
jurídico-formal e desafiem a ordem estabelecida – ocupações, centros sociais,
hortas comunitárias, pinturas murais, etc. – são excluídas da cidade criativa à la Florida. No entanto, é essa constelação de
experiências criativas, protagonizadas por aqueles que são silenciados pela
(exclusiva) cidade criativa, que nos pode ajudar a produzir imaginários urbanos
alternativos, pós-capitalistas, a ensaiar uma cidade outra em que os
dispositivos e meios da sua produção, apropriação e uso sejam devolvidos aos
seus habitantes e utilizadores quotidianos e não propriedade exclusiva de um
capital financeiro-imobiliário, rentista e parasitário, que vorazmente a
consome e destrói. Infelizmente, também não consta que estas experiências
urbanas criativas façam parte do programa TEDX.
28/08/2013
André Carmo
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