Mais uma vez, à semelhança do que
já havia sucedido num passado recente, Joaquim Raposo, arquétipo de um tipo
particular de governação (endémica no território nacional), que ao mesmo tempo
que estabelece uma relação de perfeita simbiose com os poderes imobiliários se
revela parasitária do desenvolvimento local, mandou afixar no dia 17 de Julho,
por intermédio da Polícia Municipal, avisos de demolição no bairro de Santa
Filomena, na Amadora. O terrorismo psicológico, a pressão constante sobre os
moradores, a estratégia imoral é reveladora, não do carácter de Raposo, mas de
uma forma específica de exercício do poder político que não olha a meios para
atingir os seus fins.
Refém de promessas eleitorais
(como mostra a pressão exercida pelos moradores da urbanização de Vila Chã) e
de especuladores imobiliários (recorde-se a recente notícia de um caso
(arquivado) que demonstrava a existência de corrupção e tráfico de influências
entre o edil e a empresa Urbidoismil (alegadamente, é claro)), Raposo teima em
atropelar (com bulldozers) um dos mais elementares direitos humanos – o
direito à habitação – que se encontra vertido num vasto conjunto de tratados e
convenções subscritas pelo Estado Português e plasmado na sua Constituição no
artigo 65º. Infelizmente, existência de jure que teima em não se
materializar de facto.
Em última instância, é sobre o
inefável Raposo que impende a responsabilidade desta flagrante violação dos
direitos humanos. Não obstante, é importante também sublinhar – ferindo
ostensivamente susceptibilidades (a reciprocidade é um princípio de justiça e
as susceptibilidades dos ofendidos pelo lamentável desenrolar deste caso, e
doutros similares, são sempre feridas de morte) – o papel do racismo
institucionalizado – subtil, no caso dos assistentes sociais que procuram, e
têm-no conseguido, desmoralizar os moradores; flagrante, no caso das forças
policiais, cujo registo criminal atinge já proporções biblícas. É um facto: a
mão direita e a mão esquerda do Estado, funcionam sempre melhor em conjunto.
Primeiro violenta-se, depois conforta-se e apazigua-se, conquistando-se os
corações e as mentes (dos mais incautos). Desprovidos das mais elementares
noções de humanismo ou empatia e açicatados pela predominante cor negra de uma
comunidade cabo-verdiana, infligem, à margem da lei, danos irreversíveis a um
espaço social, também ele, incapaz de resistir, fragilizado que está pela
pobreza, pelo desemprego e pela estigmatização.
A bem montada estratégia
terrorista (é preciso reconhecer o mérito onde ele existe) que, gradualmente,
vai fazendo o seu caminho, instala o medo nos moradores e torna muito mais
fácil à restante sociedade, amedrontada, inerte e alheada, assobiar para o
lado, fingir que nada se passa e assim tornar-se cúmplice do crime que está em
curso. O HABITA, bem como outros movimentos, organizações e cidadãos, que ainda
preservam alguma capacidade para se indignar e pensar criticamente, tem
denunciado sistematicamente este caso que, embora aconteça à escala urbana,
revela alguns dos mais preocupantes e estruturais problemas da sociedade
portuguesa.
A (sub)urbanização da injustiça
inscreve-se de modo cada vez mais fundo e duradouro, contribuíndo para a produção
de uma paisagem urbana desoladora e disfuncional. A segregação urbana,
económica e cultural, é uma das marcas características do processo de
desenvolvimento da metrópole lisboeta. Santa Filomena, Cova da Moura, Vale da
Amoreira, 6 de Maio, Quinta do Mocho, entre muitos outros bairros, ilustram-no.
A transformação destes espaços, num sentido oposto aquele que desejam os
poderes rentistas-imobiliários (mercadorização/privatização/estetização)
implicará sempre que os seus habitantes se auto-organizem e procurem tomar nas
suas mãos o destino dos espaços que lhes pertencem, que quotidianamente ajudam
a (re)construir e cujo futuro depende, em larga medida, da sua capacidade de
forjar solidariedades e subjetividades políticas atuantes que, com audácia e
combatividade, procurem resistir e contrariar o poder hegemónico da cidade
feita para o lucro. A cidade é das pessoas. É para elas (e por elas) que deve
ser incessantemente (re)construída.
André Carmo
06/08/13
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