terça-feira, 6 de maio de 2014

Urbicídio: esta é a política urbana na Amadora

Hoje, bem cedo pela manhã, recomeçaram as demolições e os despejos no bairro de Santa Filomena, na Amadora. A violência usual, a indiferença do costume, o silêncio e a invisibilidade de uma política urbana que sistemática e deliberadamente destrói uma comunidade muito fragilizada, inflingindo dor e sofrimento a todos que dela são vítimas. Desta feita, foram cerca de um dezena as pessoas que viram as suas casas destruídas. Todas elas desempregadas.

Trata-se, efetivamente, de um urbicídio perpetrado pelo atual executivo camarário encabeçado por Carla Tavares do PS que, de modo enérgico, dá continuidade ao trabalho anteriormente desenvolvido pelo inefável Raposo, ilustre militante da mesma organização partidária.

Como sugere Martin Coward em Urbicide - the politics of urban destruction, a noção de urbicídio foi pela primeira vez usada no âmbito da guerra na Bósnia (1992-95) para designar a destruição profunda e deliberada do ambiente urbano, configurando, assim, uma expressão particular de violência. Como nos tem mostrado a história recente, a Câmara Municipal da Amadora (CMA) declarou guerra aos bairros pobres do municipío, sendo "a erradicação de núcleos degradados" o alfa e o ómega da sua estratégia de desenvolvimento urbano. É esta resposta para as questões habitacionais da cidade e respetiva população que a CMA apresenta e impõe, com uma insensibilidade e incapacidade de se colocar no lugar do outro que apenas está ao alcance de sociopatas. Seguramente criativos e altamente empreendedores mas, ainda assim, sociopatas.

Doravante, sempre que ouvirmos falar do poder local como uma das mais importantes conquistas de Abril, não podemos senão interrogarmo-nos sobre o verdadeiro significado destas conquistas. Na verdade, no caso da Amadora, torna-se claro que o avanço civilizacional parou em Março. A urbicida Tavares, essa, permanece impávida e serena. Terá sempre uma casa a que pode regressar, para junto daqueles de que mais gosta, depois de mais um, por sinal bastante devastador, dia de trabalho.

Aparentemente, para os vândalos da CMA, a destruição de Santa Filomena não é mais do que um dano colateral rumo ao desenvolvimento e ao progresso da antiga Porcalhota. As pessoas contam pouco. Os fundos de investimento imobiliário, contam bastante mais. É, aliás, para estes, que toda a política urbana parece orientar-se. Tudo deve subjugar-se perante os interesses especulativos dos obscuros fundos. São eles que definem as regras do jogo. Os executivos, não são mais do que gestores e executantes, intermediários políticos dos interesses económicos que concebem as cidades, os solos urbanos e a habitação como um bom investimento e não como um bem comum.

É evidente que tudo seria diferente se não fossem sobretudo cabo-verdianos os habitantes de Santa Filomena. Trata-se de uma flagrante limpeza étnica. Afinal de contas, um território purificado é muito mais rentável e atrativo como, aliás, não se cansam de nos lembrar os (potenciais) residentes em Vilã Chã, bairro contíguo a Santa Filomena. Já em 14/07/2010, uma tal de Marisa escrevia preocupadamente em http://vila-cha.blogspot.pt/: «Boa noite, tenho em vista um apartamento nesta Urbanização mais propriamente no lote 72 que tem vista para o Bairro de Santa Filomena. Uma vez que os moradores se devem ter questionado bastante quanto ao desaparecimento do mesmo e possam ou não ter obtido informações gostava que me pudessem ajudar na decisão. Existem vários factores que me podem levar a desistir da possível compra, sendo o principal factor se o Bairro vai mesmo desaparecer e daqui a quanto tempo? (...) Se realmente for construído um bairro social na Vila Chã será que as casas depois não ficaram desvalorizadas? A casa será um 5º andar, tem uma vista desafogada, mas em contrapartida é ter o bairro logo em frente. Gostaria que me ajudassem, para saber se valerá a pena investir nesse apartamento ou não».

Como salienta Martin Coward, o urbicídio visa justamente eliminar as condições de possibilidade da heterogeneidade urbana, um dos atributos mais definidores daquilo que é uma cidade. Deste modo, a lógica de destruição sistemática de um tecido urbano outro, como é o caso de Santa Filomena, por parte de uma CMA que não é refém, longe disso, mas cúmplice da especulação imobiliária, acabará por construir uma cidade que não o é verdadeiramente, um espaço social monolítico, homogéneo, encapsulado sobre si próprio e fechado ao exterior. O urbicídio cometido pela CMA irá inexoravelmente levar à destruição da Amadora naquilo que ela tem de melhor, o seu cosmopolitismo suburbano, o hibridismo cultural e a miscigenação social.

É importante pôr cobro à destruição urbana levada a cabo pela CMA! O Habita - Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade, continuará o seu esforço de denúncia, resistência e combate contra o urbicídio em curso na Amadora e apela a outros movimentos, organizações e pessoas comprometidas com uma cidade mais justa e solidária que façam sua a nossa luta.

André Carmo
06/05/2014

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