Começo por aquilo que foi o nosso ponto de partida e que
ainda hoje tem um peso relevante: todas as semanas: moradores/as de vários
bairros da Amadora, a Associação Habita, outras associações, coletivos e pessoas
solidárias, são obrigadas a fazer piquetes e outras ações de mobilização, uma
vez que ali, ao longo dos anos, a Câmara Municipal em concertação com as forças
policiais organizam o despejo sistemático, forçado e violento de famílias que
não têm acesso ao mercado da habitação. Estas entidades sabem perfeitamente da
situação de pobreza e enorme vulnerabilidade destas famílias que habitam em
casas autoconstruídas há muitos anos – única forma encontrada de resolver a sua
situação, perante a ausência de políticas públicas que a estas respondessem. No
entanto, e apesar do artigo 65º da Constituição da República, forças do Estado
retiram o único teto destas famílias, sem providenciar nenhuma solução
adequada. Também não há um sentimento de indignação sobre esta situação na
sociedade em geral.
Esta situação não é, ao contrário do que muitos pensam,
apenas um caso particular da Amadora, é antes um reflexo visível (ou a que se
deu visibilidade) da ausência total de respeito por um direito fundamental, direito
humano, social - o direito à habitação - e que afeta muito mais gente, atacada
também pelo desemprego ou redução drástica de rendimentos e que lida
constantemente com dificuldades – e risco de despejo - no pagamento do crédito
à habitação ou do arrendamento. Falemos claro, o direito à habitação não é
reconhecido no nosso país, e parece estar normalizada a ideia de que, se
queremos casa, pagamos; se não, RUA! No país onde o ordenado mínimo é regra
para muitas famílias e o rendimento médio dos mais baixos da Europa, fica muito
complicado.
O que é que isto tem que ver com a dívida? O facto de a
política pública de habitação ter sido o incentivo ao endividamento: Foram
créditos bonificados – subsídios diretos aos bancos a sair do Orçamento de
Estado – isenções fiscais para a compra de casa e o a construção direta de
infraestruturas pelo Estado em urbanizações privadas em desenvolvimento. O investimento
do Estado foi considerável, mas não no desenvolvimento de uma política de
habitação para todos/as, adequada ao rendimento das pessoas; antes a compra
através do crédito em que, quanto mais crédito e mais tempo para pagar, mais
caras as habitações seriam, mais endividadas as famílias e, também, mais
endividado o país. Foi à custa desta política que aumentámos drasticamente a
dívida externa (mas, a componente privada). Esta política deu grandes ganhos e
grande alavancagem à banca para, apoiada nos milhões de créditos à habitação
que fez, divagar sobre outras jogadas financeiras. Os bancos conseguiam com
este negócio emprestar três vezes para o mesmo pedaço de chão: compra do
terreno, construção do empreendimento e compra da casa.
Foi o elevadíssimo nível de endividamento que veio
justificar a narrativa da entrada da troika em Portugal, o excesso de
endividamento, muitas vezes confundindo-se (não inocentemente) dívida privada
com dívida pública. Na verdade, o que se fez foi proceder a uma enorme
transferência de dívida privada (dos bancos) para dívida pública. Tal como o subprime nos Estados Unidos, também aqui,
o imobiliário é central nos mecanismos que produziram a crise, através de uma
política neoliberal, de mercantilização e financeirização, de um direito
fundamental que devia ser parte de um Estado Social desenvolvido.
Mas a história não fica por aqui: com a entrada da troika, o
memorando assinado prevê, no seu sexto ponto, a liberalização total do mercado
de arrendamento o que significa maior facilidade em despejar e aumento das
rendas antigas. Porquê? Porque é que a troika e o governo português, para concretizar
este empréstimo de dinheiro a Portugal, quer intervir no mercado de
arrendamento privado? Porque há uma nova estratégia do capital: o “ataque” do
mercado aos centros das cidades para investimento no turismo, na reabilitação
para sectores altos da sociedade, para investir também no arrendamento, uma vez
que o modelo anterior de construção desenfreada e venda de casa própria parece
estar esgotado para as próximas décadas. É aí, nos centros, que se concentram mais contratos
de arrendamento que importava precarizar. Ou seja, mais do mesmo, o
arrendamento já há muito que era mais caro do que a própria compra (se visto mensalmente),
a política de habitação continua a ser o mercado liberalizado, sem que de todo este funcione
no modo perfeito: os preços não baixam, apesar do excesso de casas vazias que
temos (uma em cada cinco).
Assim, tal política afeta famílias de muitas maneiras: mais
de 700 000 famílias vivem em sobrelotação, um número desconhecido de
pessoas vive em quartos e pensões degradadas, em anexos, a
continuação da existência de barracas, pessoas que pagam a casa e não têm o que
comer, os jovens que não conseguem sair da casa dos pais ou que para esta
voltam. É aos mais pobres que esta realidade mais afeta: 30% das famílias que
auferem menos do que 60% do rendimento médio, paga mais de 40% em habitação. É
uma taxa de esforço muito elevada para este nível de rendimentos.
Estas são as consequências da política de apoio ao crédito, e ao endividamento, que apenas desenvolveu 2% de habitação social – de má qualidade, estigmatizada,
pobre para pobres – e não investiu de todo numa regulação e promoção do mercado
de arrendamento.
Mas o governo diz que em matéria de habitação e reabilitação
urbana está tudo resolvido. Na Agenda 20-20 a liberalização do mercado de
arrendamento é a chave da solução.
Pois que a habitação está fora do Estado Social no nosso
país. Quando se referem a este falam em saúde, educação e segurança social, mas esquecem sempre a habitação. Mas atenção, se não seguem o mesmo destino, estes sectores fundamentais, no
processo crescente de mercantilização. A habitação foi e é percurssora
deste modelo neoliberal altamente excludente. E tal está de tal forma enraizado
na nossa sociedade que até vários sectores de dita esquerda têm dificuldades em
ver uma política de habitação fora do mercado. É que, para isso, seria
necessário confrontar o poder excessivo da propriedade, regular o mercado de
arrendamento, multar de forma pesada o património vazio, e não só...
Rita Silva
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