quinta-feira, 12 de julho de 2012

A angústia entre ruínas

Diáspora/Bairro de Santa Filomena: A angústia entre as ruínas
11 de Julho de 2012, 11:20

A camioneta da Câmara Municipal da Amadora aguarda, vazia, num largo que ficou depois do desaparecimento de meia dúzia de casas. Simples e humildes, onde habitaram famílias cabo-verdianas. A mando do presidente, as máquinas entraram e destruíram-nas. 
Dois funcionários aguardam lá dentro que alguns moradores arrumem os seus últimos pertences e se despeçam para sempre das paredes toscas que foram o seu lar durante anos.
Depois de vazias as casas serão arrasadas numa questão de minutos e o sol só encontrará pedras e entulho naquele chão que um dia foi um pedaço de Cabo Verde na Amadora.
A poucos metros dali, um velho cabo-verdiano reformado, com óculos de massa e lentes grossas, está sentado numa cadeira sobre os cacos que restam talvez da sua sala de estar ou do seu quarto. Tem o olhar cravado no chão. Talvez pense nos dias que ali passou. Em volta nada ficou de pé. Ali perto, apenas uma mesa com um peluche branco em cima e um velho sofá castanho voltado para o nada, no meio do entulho de pedras e cacos de tijolo. Chamam-lhe Mulato, mas o seu verdadeiro nome é João de Deus. Vive há mais de 20 anos no bairro. Agora vai ter de ir morar com a filha, que recebeu uma casa da Câmara no Bairro da Boba, no mesmo concelho.
A casa de Ana Cristina Coelho dá para um canal que faz as vezes de rua. Lá de dentro chega-nos o som de um zouk crioulo. A sua casa também tem os dias contados: dia 19 de Julho chegarão as máquinas e as paredes cairão por terra. Mora no bairro há seis anos e sabe que não tem direito a ser realojada pela Câmara. Tinha esperança. Agora não tem destino. Está em Portugal sozinha com uma criança.
Ao tempo do último recenseamento, em 1993 - critério tido em conta pela Câmara Municipal da Amadora para a atribuição de casas aos moradores despejados - talvez fosse do tamanho do filho que agora se esconde por entre as suas pernas, à porta de casa. A sua esperança era que a Câmara lhe arranjasse uma casa de acordo com as suas posses. Se não for assim, está decidida: a Câmara terá de 'demoli-la' juntamente com a casa.
A história dos acontecimentos do passado dia 21 de Junho, com a manifestação de alguns moradores do Bairro de Santa Filomena, frente ao edifício da Câmara Municipal da Amadora, atraiu a imprensa portuguesa. A intervenção da polícia provocou, pelo menos, um ferido. Mas a vereadora responsável mantém-se irredutível. Quem não constar no recenseamento de há 21 anos não será realojado, ponto final. A Câmara está disposta a pagar os três primeiros meses de renda aos despejados, numa nova casa. O resto é com eles. Quem não quiser ficará na rua.
Espaço Jovem e o almoço dos pobres
Alcides Mendes, morador no bairro há mais de vinte anos, tem o seu problema resolvido. Enquanto coloca a chave na porta da sede da Associação Espaço Jovem, diz-nos que apenas trinta por cento dos cerca de 2 500 habitantes do bairro estão inscritos no PER Família - Programa Especial de Realojamento. E que, de facto, o recenseamento foi feito em 1993. Mas se as pessoas continuaram, entretanto, a vir morar para o bairro é porque o problema não foi resolvido pela Câmara dentro do prazo que estava estipulado - aliás, como aconteceu com outros bairros idênticos, em Loures, Oeiras e Cascais. Santa Filomena tem mais de 40 anos. De início era um bairro de lata e só mais tarde as pessoas começaram a fazer casas de tijolos. Em 1993, na altura de recenseamento, a Câmara prometeu acabar com o bairro em cinco anos.
A sede da Associação está tão degradada como a maioria das casas do bairro. Mas o importante é o seu papel em manter os jovens ocupados. Mas pouco há para ocupá-los. Alcides é o presidente. Mostra-nos os computadores alinhados ao longo da sala, verdadeiras janelas para fora das ruelas e das esquinas sombrias. Mas é tudo. O Espaço Jovem pouco mais tem para oferecer.
Ali ao lado, num terreno anexo, num contentor metálico transformado em sala de convívio, um grupo de crioulos de meia idade joga às cartas. Cá fora, num fogão improvisado, prepara-se uma panela de arroz e o molho para o esparguete. É uma espécie de almoço comunitário, explica Alcides. Os reformados, com o pouco que ainda vão recebendo, contribuem para que muitos que nada têm possam ter uma refeição quente.
Crise económica
A Câmara devia analisar o problema dos moradores caso a caso e não meter toda a gente no 'mesmo saco'. Alcides acha incrível que pessoas que chegaram ao bairro em 1994/95, por exemplo, não sejam tidas em conta no programa de realojamento. Muitas têm saído por iniciativa própria e ajudadas pelo Instituto da Habitação. "Há mais de 8, 10 anos que oiço dizer que o bairro vai acabar; e as pessoas que aqui moram sabem disso, mas contavam que quando chegasse o dia tivessem condições para morar numa casa fora do bairro, o que não contavam era com esta crise económica."
A crise fez sair as mesas para as ruas. Jovens e homens maduros jogam às cartas a meio da manhã. O desemprego galopante na construção civil, sector profundamente afectado, junta homens às esquinas do bairro numa conversa de rotina, sem novidades, sem alegria. As pessoas estão paradas, à espera. os jovens sentam-se onde podem, encostam-se às paredes, conversam, à espera. É o quotidiano de um bairro de imigrantes desempregados. As tardes sucedem-se às manhãs. O sol nasce e põe-se. A única novidade de que toda a gente fala são as máquinas que vêm destruir as casas. Primeiro chegam os funcionários acompanhados da polícia, para que nada nem ninguém fique dentro de paredes.
Nelito foi o primeiro a ver a sua casa ir abaixo. Ficava logo à entrada, à saída da Avenida Lourenço Marques, a porta de entrada para o asfalto, a 'cidade' propriamente dita. Chegou ao bairro há poucos anos. A Câmara propôs pagar-lhe três meses de renda numa outra habitação. Nelito recusou. No dia seguinte mal teve tempo para retirar as suas coisas. Está desempregado. Agora recolhe ferro-velho para vender.
Para Alcides Mendes, a Câmara tem de ver estas pessoas também como cidadãos portugueses e não como imigrantes, porque muitas têm nacionalidade portuguesa. "Há uma ambiguidade de critérios e falta de entendimento dentro da própria Câmara", diz o dirigente associativo. "Há uma incompatibilidade de serviços, a vereadora diz uma coisa  e a técnica da acção social diz outra; a vereadora diz que quer estudar caso a caso para ajudar as pessoas a encontrar uma casa de acordo com as suas posses, mas quando as pessoas são chamadas ao gabinete dizem-lhe 'tens x dias para arranjar casa, se não arranjares não recebes nem dois meses e vais para a rua'".
Câmara não recua
No comunicado emitido logo após os tumultos do dia 21 de Junho, a Câmara Municipal da Amadora chama a si a tarefa de "erradicar as bolsas de habitação degradada" e "resolvendo a situação habitacional dos residentes em bairros de barracas."
A autarquia apoia-se no PER – Programa Especial de Realojamento, de 1993, fazendo ainda referência ao "atendimento integrado àqueles que tendo chegado posteriormente ao bairro carecem ainda de auxílio ou de incentivo para encontrarem uma alternativa habitacional digna, sendo que estas últimas,sempre foram informadas de que não teriam direito ao arrendamento de uma habitação social."
O comunicado refere ainda que, apesar disso, "desde há largos meses que se vem procurando, num trabalho conjunto entre as famílias e as entidades públicas, encontrar soluções de acordo com as características e necessidades de cada agregado familiar."
Entre as 30 a 40 pessoas que já saíram do bairro, as que tinham direito ao realojamento foram para casa de familiares. As outras estão sendo realojadas no Casal da Mira e no Bairro da Boba, no conselho da Amadora. Mas o grosso dos habitantes do bairro está fora do processo de realojamento. Ou seja, cerca e de 200 famílias estão entregues à sua sorte.
Os moradores constituíram, entretanto, uma comissão para tentar dialogar com os poderes públicos. Em desespero, apelaram para a embaixada e para a Comissária do ACIDI- Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. Segundo Alcides, a embaixada interessou-se pelo problema ao início, depois nunca mais. "Falámos também com a ministra das Comunidades, durante a sua última visita a Portugal, e ela só disse para irmos com calma."
"A Câmara podia esperar até a crise passar e depois as pessoas já teriam melhores condições para sair; não compreendo porque querem neste momento fazer isto." Alcides tranca a porta da sede da Associação e entramos no anexo onde se prepara o almoço para os mais necessitados. "As pessoas dão o que podem, junta-se tudo, e quem não tem vai lá comer, e já vão lá famílias inteiras."
Eurico, de 37 anos, está desempregado há um ano. Corre para o jornalista que se prepara para deixar o bairro e os seus problemas. A sua casa é das próximas a cair. Neste momento não tem qualquer solução para a sua vida. Tem família em Lisboa, mas acha que estes não vão aceitá-lo. É mais uma boca para a mesa e não há espaço suficiente. Pede apenas ao jornalista que assista à reunião da próxima quinta-feira. A comissão vai tomar algumas decisões importantes.
Mas no meio do quadro social dramático do bairro, Eurico pode ser considerado um privilegiado: não tem filhos, vive sozinho, não construiu a casa onde mora, não paga a renda; ficou com a casa de um antigo morador.
"Gostaria que o senhor presidente explicasse porque é que nós não temos direito ao PER; nós também somos seres humanos e precisamos de uma habitação, de uma casa."
Joaquim Arena

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